Bemdito

Sem cadastro, sem vacina

A estratégia de vacinação por agendamento tem vantagens logísticas, mas pode burocratizar e excluir os mais vulneráveis do acesso ao imunizante
POR Juliana Diniz
HELENE SANTOS/GOV. DO CEARA

A estratégia de vacinação por agendamento tem vantagens logísticas, mas pode burocratizar e excluir os mais vulneráveis do acesso ao imunizante

Quem assistiu à TV nos últimos dias já sabe: em Nova York, já se oferece vacina a grito, no meio da rua, ao melhor estilo vendedor ambulante na Praça do Ferreira. Não há muita dificuldade para receber o imunizante: americano ou turista, basta apresentar um documento de identificação e oferecer o braço a quem for aplicar. Rápido, sem burocracia, quase indolor.

No Brasil, estamos atravessando um esquema oposto. A campanha de vacinação é uma espécie de gincana que exige atenção, ansiedade e uma boa dose de inclusão digital. Não procure uniformidade: cada Município tem suas prioridades e seus critérios, de modo que o que vale para um pode não valer para o outro. É preciso um pouco de sorte, paciência e resiliência ao nervosismo.

Quero falar sobre o Ceará e Fortaleza, que têm trabalhado com a sistemática da vacinação por agendamento. Embora nenhuma estratégia seja perfeita, sempre é possível indagar: ao condicionar o acesso à vacina ao cadastro, até que ponto estamos excluindo aqueles que não tem a informação refinada e um smartphone sempre à mão? Cadastrar não é tão simples para todos.

Em terras cearenses, o cidadão disposto a se proteger precisa, em primeiro lugar, preencher um cadastro único digital, onde é possível declarar as informações básicas, responder sobre suas possíveis comorbidades e atuação profissional. Depois de superada essa etapa, cada município organiza os agendamentos a seu modo – em Fortaleza, é possível acompanhar a sua situação pessoal neste cadastro aqui, embora pouca gente saiba disso. 

Se você não recebeu, por graça e ajuda de algum amigo, o link do cadastro de Fortaleza, a saída é acompanhar as listas de agendamento, publicadas periodicamente pela prefeitura. Durante os primeiros meses, foi uma rotina de emoção: a Secretaria de Saúde publicava tarde da noite a lista dos agendados do dia seguinte, de modo que era preciso manter-se alerta, em estado de permanente ansiedade, para verificar se o seu nome ou de algum dos seus seria contemplado na famigerada lista do salvamento.

Foi assim que descobri, à meia-noite, que minha mãe seria vacinada na manhã do dia seguinte e liguei eufórica para que ela cuidasse dos documentos médicos necessários à comprovação da sua doença. Ela foi vacinada, para nosso alívio, mas uma pergunta permaneceu me inquietando por dias: e se eu não tivesse olhado, à meia-noite, a lista daquela sexta-feira? 

 Depois de muitas reclamações e de uma recomendação do Ministério Público, as listas passaram a ser publicadas com alguns dias de antecedência, embora sejam, a princípio, flexíveis – não raro são atualizadas ao longo dos dias, de modo que é preciso reconferir sempre. Também convém se manter atento aos stories do prefeito. Ele faz sua publicidade de sempre, dá dicas sobre onde comprar bolo e também informa sobre as novidades quanto às atualizações.

 Eu fui agraciada por uma das listas ampliadas. Na primeira publicação, em 30 de maio, quando muitos de meus colegas professores elegíveis à vacina descobriram seus agendamentos para a semana seguinte, meu nome não apareceu nas listas. A atualização só aconteceu um dia antes do dia indicado para me imunizar e só não me pegou desprevenida porque minha atenção estava direcionada a mapear, como um detetive, a ordem da vacinação da cidade, à espera da minha vez. 

Precisaria ser assim? E quem não tem essa disposição, esse nível de ansiedade ou o acesso obsessivo à informação?

A estratégia da vacinação por agendamento entusiasma por uma questão logística: em tese, é possível calibrar melhor a distribuição de vacinas, prevendo o volume de doses que serão aplicadas em um dia e alocar as pessoas em distintos postos de vacinação (mesmo que isso signifique, como no meu caso, um agendamento em um posto a 20km de distância de onde moro). Também tem sua comodidade: filas, em tese, menores, o tumulto sob controle, e o desestímulo a quem pretende escolher “a marca” da sua vacina. Se o seu dia é hoje e você terá uma nova chance sabe Deus quando, fica mais difícil recusar a dose que está ali à mão.

 O problema é outro: é um sistema de vacinação que privilegia quem já tem intimidade com o universo dos aplicativos digitais, quem sabe como procurar, como acompanhar, quem tem os dados pessoais à mão, uma boa internet disponível e atenção redobrada. A simples suposição de que o acesso ao cadastro é universal não quer dizer que, de fato, seja. Não se engane se seus amigos do Instagram comecem a aparecer com sorriso no rosto e cartão de vacinação à mão. Sua percepção é enviesada pela sua bolha.

Para muitos, o acesso às vacinas ainda parece distante e complexo, mesmo que essas pessoas já pudessem estar vacinadas conforme a prioridade estabelecida pela prefeitura. Por isso, ajude a todos a seu redor. Não se constranja de perguntar: já fez seu cadastro? Está acompanhando as listas? Para aquele avô bolsonarista, não titubeie, a chantagem pode ser uma boa estratégia de convencimento! 

A informação é um capital importante (e restrito a algumas classes). Como não existe um programa nacional de imunização unificado, com critérios uniformes no país, a comunicação é local, quase sempre muito ligada às figuras dos gestores, por isso difusas e falhas.

Aperfeiçoar é possível. 

Em primeiro lugar, por que não eliminar a espera pelas repescagens? Se seu dia passou e você não pôde ir, essa informação é facilmente verificável pelas listas, por que poder não ir a um posto e simplesmente vacinar?  

Os agendamentos precisam ser feitos a partir de critérios um pouco mais transparentes. Vamos citar um exemplo. Se eu sei que amanhã estarão agendados todos aqueles que nasceram entre 1/1 e 30/6 de 1965 e, por algum motivo, não estou cadastrada, eu deveria simplesmente me apresentar a um dos postos e, com RG e comprovante de endereço à mão, receber o imunizante, como acontece em outras cidades. Seria uma forma de associar o melhor dos dois métodos e reduzir a ansiedade da população para saber quando chegará seu dia. A ordem é estimular e desburocratizar, e não transformar a vacinação numa prova de obstáculos.

Mais do que isso: o Poder Público tem a obrigação de informar, informar, informar. Em todos os canais, por todas as linguagens, com meme, Wesley Safadão e forró, se for preciso. Só assim o programa de imunização chegará ao conhecimento de todos, sem nuances, sem exclusões, com ou sem smartphone.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.