Bemdito

“Emocionalmente abalada”, diz delegada negra impedida de entrar em loja de Fortaleza

EXCLUSIVO // Ao Bemdito, Ana Paula Barroso conta que gerente alegou “questão de segurança” ao barrá-la na entrada da loja Zara
POR Thiago Paiva
A delegada Ana Paula Barroso foi impedida de entrar na Zara do Iguatemi de Fortaleza (Foto: acervo pessoal)

“O sentimento que tive foi o de ser indigna de estar naquele ambiente, naquele lugar. Um ambiente de tratamento seletivo. Fiquei impactada. É uma coisa que você não espera. Você sente o não pertencimento. Foi como se aquele lugar não me pertencesse, como se eu não pudesse estar ali. Fiquei emocionalmente abalada”.

Foi assim que a delegada Ana Paula Barroso resumiu o sentimento que teve ao ser impedida de entrar em uma loja da Zara, localizada no shopping Iguatemi, no bairro Edson Queiroz, em Fortaleza. Diretora-adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV) da Polícia Civil do Ceará (PC-CE), Ana Paula falou, com exclusividade, ao Bemdito. Ela conta que denunciou o caso como crime de racismo.

A Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Fortaleza apura o episódio, ocorrido no último dia 14, por volta das 21 horas. Foi quando a delegada, que tomava um sorvete, tentou entrar na loja, que não costuma frequentar.

“Nunca vou lá. Mas, como tudo na vida, e como cristã que sou, acredito que nada acontece por acaso. Para tudo há um propósito. Estou em um departamento da Polícia Civil que atende a grupos vulneráveis. E Deus permitiu que eu entrasse naquela loja, que eu nem ia entrar, e passasse por esse dissabor, para que isso não ficasse impune”, afirma.

O Bemdito teve acesso ao Boletim de Ocorrência do caso. Conforme o documento, enquanto caminhava para o interior da loja, Ana Paula foi abordada pelo gerente do estabelecimento, que teria pedido para que ela se retirasse por uma questão de “determinação de segurança do shopping”. 

Ainda segundo o documento, sem entender, a delegada questionou se o motivo seria a máscara baixa, que subiu, cobrindo nariz e boca. O gerente, porém, insistiu. Sem detalhar o motivo de “segurança”, que repetia de forma “exaustiva”, não permitiu que ela avançasse.

Sem se identificar como delegada, Ana Paula, então, deixou a loja. Conforme o B.O, ela abordou três diferentes seguranças do shopping, relatando o ocorrido. Todos negaram que houvesse a determinação alegada pelo funcionário da loja.

Procurado, o chefe da segurança do shopping naquela noite também negou a determinação, conforme o texto. Ele acompanhou a delegada até a loja e refutou, na frente do gerente, a alegação apresentada pelo funcionário, que pediu desculpas.
“Quem está de fora costuma dizer que tudo isso é “mi, mi, mi”. Não é! Ele disse que tinha errado, mas não tinha preconceito. Que ele tem amigos ‘que, inclusive, são negros, gays e transexuais’. Isso só confirma o racismo velado”, defende a delegada.

Após o registro da ocorrência, a delegada Anna Nery, titular da DDM, fez um requerimento, solicitando aceso às imagens das câmeras de segurança da loja e do shopping. O Iguatemi forneceu o material. A Zara, porém, negou.

Anna Nery, então, solicitou autorização judicial para cumprir um mandado de busca e apreensão na loja. O pedido foi deferido e o mandado foi cumprido na tarde de ontem, 19, quando os policiais foram até a loja para recolher os equipamentos que registraram as imagens do episódio.
 
O Bemdito entrou em contato com a Zara, para saber quais providências serão adotadas pela loja, e sobre a recusa no fornecimento das imagens, mas as chamadas não foram atendidas.

Casos anteriores
Essa não é a primeira vez que a delegada enfrenta episódios de falas ou situações racistas. Ela contou ao Bemdito que casos de preconceito são recorrentes, como no dia que foram fazer um serviço em sua residência, e o técnico questionou à delegada e à sua mãe, também negra: “vocês trabalham aqui?”. 

Recordou ainda de um episódio, ocorrido há alguns anos, quando foi prestar serviço em um órgão público e o responsável a recebeu, orientando: “aqui, o serviço é bem simples. É só pra limpar as salas, servir o café pros servidores…”.

“Desta vez, foi pior. Quando o técnico me perguntou se eu trabalhava ali, ele não me barrou. Fez uma pergunta idiota. Agora, quando você tentar entrar em um lugar e a pessoa neutraliza teu avanço, teu passo, alegando que ‘não, não, questão de segurança’. Segurança de quê? Mexeu muito comigo. É sempre esse estigma de que a sua cor e sua aparência são destinadas ou direcionadas a um trabalho doméstico, um trabalho que culturalmente é destinado aos negros, com o objetivo de desmerecer os trabalhadores domésticos e os negros quando, na verdade, todos os trabalhos são dignos”, desabafou.

Entre os policiais civis e delegados, o episódio relatado por Ana Paula causou indignação. A delegada é reconhecida e respeitada entre os agentes de todas as vinculadas da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) por sua competência e discrição. Há três meses na diretoria-adjunta da DPGV, ela já atuou na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) e na Delegacia de Proteção ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (DPIPD).

Thiago Paiva

Jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário, é assessor de imprensa e foi repórter especial no Núcleo de Jornalismo Investigativo do jornal O Povo.