Bemdito

O tribunal das redes, a negação e o racismo

A reação nas redes ao episódio de racismo denunciado pela delegada Ana Paula reforça que nunca foi sobre o não uso de máscaras. É sobre racismo estrutural
POR Thiago Paiva
A delegada Ana Paula Barroso (Foto: Reprodução Polícia Civil)

O episódio de racismo denunciado pela delegada Ana Paula Barroso, ouvida em primeira mão por esta coluna, em 20 de setembro último, despertou diferentes sentimentos e reações nos usuários das redes sociais. Em uma sociedade estruturalmente racista, muitas pessoas dedicaram seu tempo não para manifestar solidariedade à vítima ou, simplesmente, se informar e ficar ciente dos fatos. Elas se ocuparam em questionar a atitude da delegada e negar, expressamente, a possibilidade de racismo.

Tão logo o caso foi noticiado pela imprensa, os comentários nas redes já eram os piores possíveis: “Só estão divulgando porque ela é delegada”; “É muito mi, mi, mi. Um conhecido me disse que foi porque ela se recusou a usar máscara”; “Ela está fazendo isso para aparecer”; “Hoje tudo é racismo… Se ela fosse branca não tinha virado notícia”, e por aí vai.

Recorrente, mas nem por isso aceitável, esse tipo de atitude está presente, invariavelmente, nas pautas que envolvem racismo ou crimes contra as ditas minorias. Curioso, também, e isso reforça o viés racista, é que o perfil das pessoas que questionam a denúncia de Ana Paula é o mesmo daquelas que costumam se posicionar em apoio irrestrito aos agentes da segurança, quando são eles os imputados por algum crime, como, por exemplo, nos casos de tortura a presos que estão sob custódia do Estado.

“Defendo a Polícia, não defendo bandido”, dizem esses críticos, como se policiais fossem seres infalíveis e impassíveis ao erro ou cometimento de crimes, tal como todos nós. No caso de Ana Paula, porém, algo a mais pesou: ali, ainda que delegada, competente e respeitada, era Ana Paula, uma mulher negra, quem estava a denunciar o racismo. E isso é intolerável aos que defendem tolerância às falas e atitudes racistas.

O fato é que Ana Paula, naquela situação, se viu vítima do mesmo preconceito e crimes diariamente denunciados a ela enquanto diretora-adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV). A delegada, conhecida por não se valer do posto que ocupa para obter vantagem, experimentou, novamente, o preconceito que atinge milhares de brasileiros e já vivido por ela própria em outras ocasiões, conforme contou em conversa anterior com esta coluna.

Para os membros do Tribunal das Redes, porém, isso não é levado em conta. Virou moda, há muito tempo, emitir opinião sobre tudo, sem o conhecimento dos fatos e, muitas vezes, de maneira criminosa. E se para qualquer pessoa com o mínimo de bom senso é sempre um dissabor ler os comentários, imagine para alguém de perfil discreto como Ana Paula, que além de enfrentar o processo de exposição e o trauma precisou se deparar com tais julgamentos. É sofrer racismo reiterado.

E assim, velada ou abertamente, o racismo vai se perpetuando. A nós, cabe manter viva a ideia de que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. E incentivar àqueles que são vítimas desse tipo de crime covarde para que não se calem, para que denunciem!

À delegada, nosso respeito.
Foi o que fez Ana Paula. Denunciou. Em choque pelo tratamento seletivo, sequer atentou que poderia dar voz de prisão ao suspeito no ato da ação racista. Ou percebeu, mas resolveu ser cuidadosa. Conhecendo o caminho das pedras, coletou provas e reuniu testemunhas. Cercou-se de munições para enfrentar a condição inversa imposta àqueles que denunciam o racismo, passando de vítima à acusada, que precisa dar explicações.

Felizmente, no bojo do material coletado, Ana Paula adicionou uma elevada dose de coragem. Talvez seja esse o item mais importante do acervo probatório nesse tipo de denúncia. Foi a coragem da delegada que reafirmou, para além do desfecho dessa investigação, e a julgar pela reação do Tribunal das Redes, o motivo dos dramas e traumas enfrentados por milhares de Anas, Paulas, negras e negros no Brasil: nunca foi sobre o não uso de máscaras. É sobre racismo.

Thiago Paiva

Jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário, é assessor de imprensa e foi repórter especial no Núcleo de Jornalismo Investigativo do jornal O Povo.