Bemdito

Soberania digital: por que o Brasil deveria se importar com isso?

A disputa pela hegemonia tecnológica no campo do armazenamento de dados
POR Desirée Cavalcante
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

É comum, quando se discute os impactos das novas tecnologias na sociedade, que se tenda a recair em abstrações de futurismos ou no desenho de problemas que parecem essencialmente novos. Entretanto, uma qualidade comum aos ditos novos dilemas tecnológicos é a potencialização de problemas antigos ou a exposição de fragilidades sistêmicas. Nesse sentido, a disputa entre países pela influência e o controle dos espaços internacionais também é estendida aos ambientes virtuais.

Esse tipo de distorção já foi experimentada, em relação às redes sociais, a partir da comprovação da influência que elas podem exercer sobre processos eleitorais em distintas partes do mundo, o que repercutiu, inclusive, com a defesa da necessidade de redução do poder de big techs, como Google e Facebook. Outro ponto de preocupação identificado é relativo ao aprimoramento das formas e da eficiência na vigilância dos cidadãos dentro e fora dos territórios nacionais. Essa questão, no entanto, não se resume a um problema de privacidade. Na realidade, a preocupação assume um refinamento político-econômico elementar ao ser interpretada a partir da ideia de soberania digital.

No contexto atual, um número muito reduzido de países – precisamente os Estados Unidos e a China – disputa a hegemonia tecnológica e possui relevante controle sobre o armazenamento de dados e a oferta de produtos, infraestrutura e serviços digitais. A dimensão dessa questão pode ser quantificável, por exemplo, pelo registro de que, nos Estados Unidos, estão hospedados 92% dos dados do Ocidente.

Essa proeminência passou a ser tratada como tema prioritário pela Europa, que se viu em um risco crescente de perda da capacidade de controle dos dados, inovação e normatização do ambiente digital. Uma vez que as demandas por acesso às tecnologias apenas tendem a crescer, inclusive a partir do fomento à expansão de oferta de serviços públicos digitais, a dependência tecnológica expõe os países às condições impostas por poucos atores internacionais.

Como retrato dessa digitalização de serviços públicos, no Brasil, grande parte dos processos judiciais é virtual e já há diversos serviços cartorários ofertados pela Internet. Além disso, a pandemia representou a expansão da oferta e da regulamentação de serviços virtuais de saúde, educação, comunicação e atendimento ao público. Ocorre que, ao mesmo tempo em que essas inovações empolgam, a dependência tecnológica brasileira alerta para os riscos de interrupção de serviços e da perda da capacidade de proteção dos direitos dos cidadãos que são interconectados por essas plataformas.

A soberania digital não é compreendida como um isolacionismo estatal. Na verdade, leis que visam impedir o acesso a plataformas estrangeiras ou obrigar o armazenamento de dados em um determinado território tendem a ser interpretadas internacionalmente como medidas autoritárias. Assim, sem recair em arquétipos e observando a neutralidade e descentralização, o Brasil precisa assumir uma posição mais ativa no debate internacional e ampliar a difusão interna sobre a profundidade do tema.

Vazamento de dados e fragilidade
No início de 2021, estima-se que tenha ocorrido um vazamento de dados por semana, num período de dois meses, que afetou, pelo menos, 223 milhões de brasileiros. A exposição da fragilidade da segurança dos dados é aliada à necessidade de cidadãos, empresas, instituições públicas e governos saberem, efetivamente, onde e como são armazenados os seus dados, assim como quem tem acesso a eles.

Um ponto fundamental é que essa questão não se trata apenas da gerência de troca de informações. Ela pressupõe o fortalecimento de uma estrutura nacional de fomento ao desenvolvimento de tecnologias e do reforço aos marcos legais de proteção dos direitos dos usuários. É preciso desenvolver uma estrutura que permita o poder de escolha sobre a fonte de aquisição e gestão de tecnologias, evitando a concentração que tem sido desenhada na atualidade.

Existe uma necessidade pungente de fortalecimento das estruturas básicas de fomento à indústria, à pesquisa e ao desenvolvimento de tecnologias no país. O Brasil não pode se manter como ator marginal no movimento de desenvolvimento de tecnologias, sob pena de se tornar uma mera colônia digital.

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.