Bemdito

Fragmentos sobre respiração

Um ensaio sobre o vínculo profundo entre respiração, cultura e emoção
POR Camille C. Branco

Quem faz um poema abre uma janela.

Respira tu, que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

(Mário Quintana)

 Eu me sentia dentro de um avião que despressurizou. Meu pai narraria esta lembrança muitas vezes ao longo dos anos: a filha de uns quatro anos, cabelos muito pretos e cacheados, sentada entre as pernas dele, enquanto ele segurava a máscara de aerossol sobre o rosto infantil. O peito afundava nas costelas e um vapor esbranquiçado subia máscara acima. Memória de criança asmática. Sintomas da medicação: taquicardia e tremores. O que o deixaria mais angustiado: a imagem da minha mão de criança tremendo enquanto segurava a dele.

 Susan Sontag escreveu A doença como metáfora quando estava com câncer. É um texto raivoso e muito encolerizado – palavras de quem sabe que irá morrer – sobre os imaginários sociais em torno das diversas modalidades de adoecimento. Entre seus interesses temáticos, a autora reflete sobre as enfermidades de trato respiratório, em especial a tuberculose. Sontag afirma que havia, durante muito tempo, especialmente na transição entre século 18 e 19, uma espécie de significado social poético em torno de padecer e morrer de doenças de pulmão. Sabe-se, é evidente, que morrer sem ar é horroroso e supliciante. Mas, argumenta a autora, a tuberculose e as dificuldades respiratórias eram pensadas como afecções que só acometiam as almas mais sensíveis, mais apaixonadas, com maior dificuldade de estar no mundo, marcadas pela fragilidade e delicadeza sentimental. 

A linguagem, sobretudo a linguagem em torno do adoecimento, não evanesce com muita facilidade. Fernanda Young, a escritora brasileira que faleceu muito jovem após uma aguda crise asmática, escreve em seu As pessoas dos livros (meu exemplar data de 2011) que o pulmão é o órgão comprometido de todos os tristes. Por coincidência, espírito do tempo ou sincronicidade, possuo similitudes expressivas com a persona de Fernanda: como foi ela, também eu mesma sou uma moça pálida, asmática, com tatuagens cobrindo o corpo, lábios minuciosamente pintados de vermelho-sangue, inclinação para a escrita e gosto por trajar corsets de vitoriana, que imprensam o tórax. 

A asma modifica o corpo e acrescenta a ele um conjunto singular de próteses e substâncias. Por ser asmática, meu torso é diminuído, resultado da contínua compressão de um maior esforço respiratório. As costelas desembocam em uma curva acentuada da cintura, em função do estreitamento ósseo. O uso contínuo de corticóides também retardou meu crescimento e sou mais baixa que todas as mulheres da minha família. Como acessório de bolsa, além de carteira, celular, livro e fone de ouvido, carrego de um lado para o outro a famosa bombinha que tantas vezes foi recurso cômico em filmes, para retratar meninos tímidos e deslocados. Certo dia – esse é um conselho valioso – minha mãe descobriu, também em um filme, que na falta de medicamentos, café preto forte, por ser vasodilatador, funciona para sanear uma crise asmática. Eu odeio café.

Costumo comentar que é fácil para um asmático ler Proust. O autor, assim como James Joyce, goza de certo temor, amplamente difundido, de ser difícil e inacessível como literatura. Proust combinava dois atributos: era obcecado pela ourivesaria da palavra, revisando seus manuscritos repetidas vezes, com aspirações de perfeição; também era acometido por severas crises de asma, que interrompiam seu trabalho por longos períodos. Tendemos a esquecer de que a escrita é um labor corporal e, como tal, sofre as influências do corpo que a produz. Aprender a ler Proust é, sobretudo, aprender a respirar como Proust. O autor escreve longas sentenças – profundas puxadas de ar – para finalizá-las com imagens de forte apelo visual e rítmico – expirações violentas. 

Respiração e paixão também são elementos intercambiáveis na história francesa sobre l’Inconnue de la Seine. Trata-se de uma garota que se afogou e foi encontrada flutuando no rio Sena nos anos 1880. O corpo foi descoberto perto do cais do Louvre e levado para o necrotério de Paris. Sem sinais de violência e regulando cerca de 16 anos, conclui-se que a menina havia cometido suicídio por afogamento. Ela era linda. Mesmo depois de todo aquele tempo no rio, ainda era linda. Um dos assistentes do necrotério ficou tão impressionado com ela que fez uma máscara mortuária. Cópias do rosto da garota foram vendidas, centenas delas. Quase todo o mundo na Europa conhecia aquele rosto, mesmo que ninguém soubesse quem ela havia sido. Ela poderia ter sido qualquer pessoa. Talvez uma garota que vendesse flores, uma costureira ou uma pedinte, mas sua identidade ainda é um mistério. Histórias, poemas e mesmo um romance foram escritos sobre l’Inconnue de la Seine. Ela se tornou uma espécie de sereia mórbida no imaginário europeu. 

Fazendo trabalho de campo em Antropologia, descubro aqui e ali alguns dados sobre como povos e comunidades tradicionais lidam, também, com os males do pulmão. Ao mencionar ser asmática para uma liderança indígena já idosa, ela me conta que o tratamento fornecido por seu povo para a asma, como doença crônica que é, também precisa ser de prolongada duração. A efetividade do chá que deve ser ingerido ao longo do tempo depende, em parte, de o doente não saber quais ingredientes foram utilizados no preparo. Em uma comunidade quilombola, por outro lado, sou informada de que o preparo medicamentoso para o tratamento de uma asma depende de uma acurada análise do funcionamento orgânico de cada doente. Os ingredientes variam, portanto, no caso a caso, prática que foi copiada, segundo me conta uma interlocutora, por médicos homeopatas no Ocidente. A depender do organismo, até mesmo enxofre, em doses calculadas, pode ser ministrado.

Os anos de 2020 e 2021, marcados pela pandemia de covid-19, convidaram novamente a humanidade a pensar detidamente sobre a ação, tantas vezes irrefletida, de respirar. Atacando, sobretudo, os pulmões, o vírus criou demandas novas, como a urgência do acesso a oxigênio em leitos de hospitais, a necessidade de uso de máscaras, que mudaram nossa forma de respirar nos espaços e nossa assimilação do rosto humano, psicossomatizações caracterizadas pela falta de ar, produto do terror gerado por esta doença. Foi o período de mais de 500 mil mortes no país e o da visualização do presidente da república imitando, com deboche, a dificuldade respiratória de um paciente com covid. A CPI da covid no Brasil revela ao mundo a negociação do direito à vida e à respiração em favor de interesses financeiros. 

Respirar é uma ação corporal que envolve sujeira, poluição, indústria, ambientes de trabalho tóxicos, desmatamento, plantas, partículas suspensas, bactérias, vírus, é o que escreve Juliana Boldrin. Respiração enreda o humano e o que está para além do humano. Os pulmões estão expostos às correlações de força que envolvem raça, gênero, nacionalidade, sexualidade. “Eu não consigo respirar” foram as palavras finais de George Floyd antes de morrer asfixiado por um policial nos Estados Unidos. Achille Mbembe escreve que, para a população negra, há um direito historicamente desigual em torno da respiração, uma vez que esta é vitimada por ações brutais de sufocamento e asfixia. O ar é invisível e insólito, mas as consequências de sua materialidade são concretas.

Respiração e emoção possuem um vínculo profundo. Nossa respiração se altera quando sentimos medo. Quando fazemos amor. Quando choramos. Cansados ou aflitos, suspiramos como expressão de nossa saturação. Apaixonados, fazemos o mesmo, se acometidos pela lembrança do rosto querido ou de uma forte sensação amorosa. O cheiro é um dos mais poderosos propulsores tanto do desejo, quanto da aversão. Por meio dele relembramos as refeições em família, o aroma dos cabelos das crianças pequenas e dos amantes adultos. Porque respiramos, apreendemos o cheiro da excitação sexual de outro corpo, bem como a miséria das pessoas desassistidas do direito à higiene, quando em situação de rua. Não é acaso que a perfumaria seja uma arte tão fina. 

O corpo humano respira e sente. Sente e respira. Entre o amor, o desamparo, o adoecimento, o afeto, a respiração não é mero acaso. Respirar envolve uma luta e uma linguagem. É um ato de resistência e disputa política. Em Belém, cidade onde vivo, no ano de 2015 vários artistas ocuparam um prédio histórico e abandonado chamado “Solar da Beira” durante semanas, em protesto contra o descaso do poder público em relação ao local. Os ativistas passaram semanas dormindo no prédio ao lado de moradores de rua e usuários de drogas, fazendo intervenções como aulas, exposições e performances. Uma das frases de ordem da ocupação do Solar afirmava: “a arte quer respirar, mas os senhores não querem deixar”. O apelo segue atual. Ainda queremos respirar, ainda que os gestos e agentes de poder mais escusos e mesquinhos não queiram deixar. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.