Bemdito

“A chegada”: um ensaio sobre filosofia da linguagem

O presente dos alienígenas no filme é um novo mundo, um novo tempo; resta saber se suportaríamos mesmo saber do futuro
POR Ricardo Evandro
Foto: Divulgação

A chegada (2016, direção de Denis Villenueve) começa com cenas da Dra. Louise Banks (Amy Adams) com a sua filha. Do nascimento até os momentos da filha ainda criança, brincando de xerife, até o momento da sua morte, provavelmente por câncer. Parece uma espécie de introdução, flashbacks de um passado traumático de doença e morte.

Logo mais, Louise aparece em uma universidade. Ela é professora de Linguística. A cena de sua aula se dá com Louise iniciando uma explicação sobre a língua portuguesa; uma língua que, segundo ela, diferencia-se das demais línguas de origem românica. Não se fala muito sobre, apenas que teria o português se iniciado na Idade Média, na região da Galícia.

E o comentário mais interessante dela é o de que, naquela época, o Português seria visto como uma expressão artística. Uma sugestão interessante de Louise, ao colocar o português como uma língua diferente das demais por sua natureza poética. É possível lembrar que, com traços castelhanos, mas especialmente galegos, o português surge como uma língua musical, “cantigada”, cantada, falando de amor.

Mas a aula logo é interrompida pelos toques de celular dos alunos. Eles estão atônitos com as notícias. Parecendo bem alheia a tudo, Louise pergunta então o que se passa. E sabe pela TV instalada na sala de aula que doze naves chegaram à Terra. Diziam “conchas”, como passaram a ser chamadas pelos americanos. E em lugares diferentes do globo.

Não sei se A chegada é já um clássico, comparado a outros do mesmo gênero, como Guerra dos mundos, Solaris, StalkerContatos imediatos de terceiro grau, Interestellar, 2001: uma odisseia no espaço, Contato, Missão Marte, Prometheus, A esfera, etc. É um filme com roteiro adaptado de um dos contos de Tedd Chiang, A história da sua vida e outros contos (1998).

Mas tem algo nele que me chama muito a atenção: não é um filme só para físicos, biólogos, astrônomos ou religiosos. É um filme que avança sobre o “cientificismo fantástico” de cunho quase sempre naturalista de Hollywood. A questão filosófica sobre Ser, Logos e Tempo é mais central. Uma ficção científica mais difícil de se encontrar, pois também tenta se aprofundar nos grandes temas das Humanidades, especialmente da Filosofia da linguagem.

“Eu sou humana”, isto é o que tenta dizer a Dra. Louise Banks para os alienígenas de sete patas. Eles são muito parecidos com polvos. E parecem lançar uma espécie de tinta preta na tela que os divide com os seres humanos. Louise desiste das tentativas fracassadas de traduzir as mensagens de voz pelos visitantes extraterrenos.

E isso seria óbvio. Se eles possuem constituição muito distinta dos nossos corpos, provavelmente porque são de um mundo com pressão, natureza da atmosfera e gravidade diferentes, então os sons propagados no nosso ar terreno seriam distorcidos. Sem contar o mais elementar: quais sons, enquanto linguagem, símbolos, eles estariam transmitindo?

“Eu sou humana” é uma frase que resume bem quem somos. Aristóteles tem uma definição que foi legada à tradição sobre quem somos: Zoon logon echon ou, traduzido, “O homem é um animal racional”.

Sobre isso, o filósofo alemão Martin Heidegger alertava já para a tradução de logon. Teria sido Leibniz aquele que teria traduzido por primeiro legon por racional, no sentido de dotado de “razão”, raciocínio calculativo, lógico-matematizante. Mas, originariamente, a palavra grega teria muito mais a ver com légein, como o verbo “falar”. O homem não seria, então, o animal racional, mas aquele dotado de linguagem, aquele que fala.

A definição de “homem”, “ser humano”, está posta. A partir disso, vou tentar ensaiar possíveis chaves de interpretação, aqui, partindo de uma tentativa de leitura desde a hipótese central de que A chegada pode ser, também, uma tentativa de confronto com os nossos preconceitos metafísicos da tradição sobre a nossa relação com o tempo, a linguagem e o conceito de ser humano.

Louise passa a ser a prova viva da chamada Hipótese de Sapir-Whorf. Esta “hipótese” é mencionada pelo personagem Ian Donnolle (Jeremy Renner). Ele é o físico parceiro de equipe da operação militar, junto com Louise, no contato com os “heptapods” – chamados assim devido ao aspecto de polvo pelos alienígenas, de sete patas.

Donnolley questiona Louise se ela não tem percebido que, com o passar do tempo, trabalhando incansavelmente com os “heptapods”, ensinando-os e aprendendo com eles nosso vocabulário, traduzindo-interpretando nossos modos de comunicação, se ela já não estaria começando a pensar de um modo diferente. Como se a nova língua em aprendizado fosse mais que um acréscimo de capacidade.

Fundamentados nos estudos mais primordiais de Humboldt sobre linguagem, a partir do conceito muito germânico de “visão de mundo” (Weltanschauung), a Hipótese de Sapir-Whorf tem esse nome porque foi desenvolvida pelos linguistas Spair e Whorf e diz, basicamente, que, quando aprendemos uma língua, nós alteramos nosso modo de pensar, passando a pensar, segundo a estrutura dessa outra língua aprendida.

Assim, deixamos, ou, ao menos, “fundimos os horizontes” (Gadamer), desde o nosso próprio modo de pensar, de acordo com a nossa chamada língua-mãe, com uma nova forma de expressão, com novos gestos, com uma nova forma de vida. Isso é muito importante para se entender o desenrolar da trama. Louise sofre mesmo com uma mudança de pensamento. Só não imaginava – tampouco nós, no cinema – que essa mudança de pensamento seria tão profunda a ponto de alterar sua estadia no “mundo” e também no tempo-espaço.

O filme todo é feito com os sonhos de Louise com sua filha morta, intercorrentes, levando os espectadores a concluir que são flashbacks. Porém, entendemos o que está em jogo somente após a descoberta da resposta para a dúvida que o Exército americano tinha em relação aos alienígenas (os “heptapods”): Qual é o propósito de vocês na Terra?

Os nossos visitantes vinham do futuro para retribuir a ajuda que a humanidade dará a eles, num futuro distante. Então, os “heptapods” em verdade vieram nos dar um presente: uma arma. Mas não uma arma de guerra, e sim, um utensílio: a linguagem deles. Mas por que aprender uma língua alienígena seria um presente, e um presente “útil”?

 Essa era uma linguagem que nos daria ciência do tempo futuro. Aprender a nova língua deles significaria poder estar no presente e ao mesmo tempo antecipados para o que ainda ocorrerá. Assim, com esta linguagem, é que se pôde descobrir, então, que os sonhos de Louise não eram com o passado. Não eram flashbacks, mas imagens do futuro. Da filha que ainda iria ter.

A tradição metafísica do Ocidente entende a linguagem como um instrumento, um órganon. Mas como diz Gadamer em Verdade e Método, a linguagem não é um instrumento. A linguagem é o médium, nosso meio de habitar no mundo (Heidegger) e de interagir com ele.

Em sentido semelhante, a linguagem pode ser entendida para além da noção do mero uso ostensivo, como dizia Wittgenstein em Investigações filosóficas. O modelo de compreensão de que a língua é um objeto de representação entre a nossa alma e o mundo das coisas não é definitivo. Nem é o melhor meio de entender a linguagem e o modo como lidamos com ela e com as coisas.

Wittgenstein, mesmo no prefácio das Investigações,  já dizia que tinha superado o modo de compreender a linguagem do seu Tractatus-logico-philosophicus. A linguagem se dá pelos jogos em que interagimos com outros falantes, jogadores. A língua como instrumento de representação é só um dos modos de se lidar com ela.

No entanto, o que os alienígenas tinham a nos ensinar era algo maior. Algo que só podemos entender se associarmos Wittgenstein com Heidegger e Gadamer. O grande segredo não era exatamente o de que o presente que eles queriam nos dar era somente a língua. Mas, com ela, uma nova forma de ver o mundo, o espaço e o tempo.

Com a língua dos “heptapods”, poderíamos, agora, ter o futuro e o passado no campo da nossa compreensão. Por isso, os sonhos de Louise com a sua filha morta não lembranças do futuro, com a filha que Louise ainda iria perder para o câncer.

Trata-se de um outro modo de perceber as coisas, as pessoas, o espaço, o tempo, o espaço-tempo para além do reducionismo de colocar o Ser como substância. E é interessante notar como os “heptapods” parecem mãos gigantes, este nosso meio de acessar as coisas que estão disponíveis a nós como instrumentos ou como conceitos abstratos.

Há uma outra temporalidade aberta por uma outra linguagem. O tempo linear se tornou circular, tendo até as possibilidades do futuro abertas aos seus falantes. Surge um novo modo de falar, um novo modo de pensar, mas também um novo modo de agir, de ser, de usar e de estar no tempo. É um novo modo de manusear o acesso ao Ser.

Não é uma arma, portanto. O presente dos alienígenas é um novo mundo, um novo tempo. Resta saber se suportaríamos mesmo saber do futuro. Será que, mais do que mortais, o que nos faz humanos não seria também ter a angústia, para além de não podermos ser tudo o que podemos ser – pois vamos morrer um dia –, de não sabermos nosso futuro? “Eu sou humano” não seria o mesmo que existir entre tentar esquecer o passado, estar presente e decidir sem saber o que nos espera? 

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.