Bemdito

O que fazer diante das ruínas?

Sobre a necessidade de estabelecer outra relação com o passado
POR Leonardo Araújo

“O que fazer diante das ruínas?”. Essa pergunta foi lançada a quem ousasse respondê-la, durante um dos encontros que tive com os participantes do projeto Casa-Escola Ool. Formulado pela artista Luiza Crosman a convite da Casa do Povo – centro cultural localizado no bairro do Bom Retiro (SP) e que abriga grupos políticos, artísticos e esportivos -, ele funciona como um território de experimentações e aprendizagem, onde cada integrante, contagiado pelos demais, pode traçar percursos formativos individuais ou coletivos, aventurando-se no desafio de instaurar um espaço comum.

Ao longo dos cinco dias de imersão, primeira atividade presencial desde o início do programa, em agosto, pude circular pelos diversos andares e salas que compunham a Casa do Povo. Construído em 1946 pelo esforço conjunto de parte da comunidade judaica que emigrou da Europa Oriental para o Brasil, o prédio foi idealizado como um monumento às vítimas do nazismo, servindo também como recurso na luta internacional contra o fascismo. 

Sua estrutura carrega as marcas dos usos diversos aos quais foi submetido no correr do tempo, tendo abrigado uma escola, uma igreja e até um mesmo um cabaré, como denuncia o que sobrou da tinta preta que costumava cobrir-lhe as janelas, a fim de dar privacidade aos casais que uniam os passos no amplo salão. Sinais da crise que se abateu sobre a instituição a partir de 1980, obrigando-a a se desviar, temporariamente, dos propósitos para os quais fora inicialmente criada. No final dos anos 2000, no entanto, iniciou-se uma retomada das atividades que conferiam sentido à Casa, momento em que passou a servir, inclusive, de espaço para encontros do Movimento Passe Livre (MPL), no fatídico ano de 2013.

Em meio às discussões contemporâneas sobre virtualidades, redes sociais e metaverso (tentativa de replicar a realidade por meio de dispositivos digitais), falar sobre a importância histórica de um prédio parece saudosismo, relíquia de um tempo ainda analógico. Apesar disso, é por sua materialidade, pela incorporação do contato com os diversos corpos que o habitaram e que continuam a circular por lá – corpos diaspóricos, negros, judeus, andinos, LGBTQIAP+ – que o edifício localizado na Rua Três Rios 252 se faz não só enclave de uma época passada, mas plataforma a partir da qual se pode pensar e agir em direção a um mundo porvir. 

Ao retornar a Fortaleza, navegando pela Internet, dou de cara com duas postagens distintas, mas que guardam uma relação preciosa entre si. A primeira chamava a atenção para um palacete localizado na Avenida Imperador, o qual pertencia a um empresário e que, depois do restauro em 2005 e dos anos em que acolheu um órgão do governo, parece estar sem função alguma no momento. A outra, acompanhada de uma imagem do calçadão da Praia de Iracema após a reforma, mostrava a área sendo atingida por um sol calcinante, sem qualquer possibilidade de abrigo para as pessoas. O texto apontava o processo de desertificação pelo qual vem passando Fortaleza, cidade onde os gestores são conhecidos por derrubarem árvores em favor da circulação de carros. 

Não muito longe desses dois endereços, o edifício São Pedro continua agonizando, abandonado à própria sorte e representando um risco a todos/as que circulam pelo entorno. 

Desuso, devoração e esquecimento.

A diferença entre a maneira como a memória é experimentada na Casa do Povo e em Fortaleza (fato para o qual me chamou a atenção um dos tutores do Ool, o pesquisador e professor Guilherme Marcondes, carioca que realiza pós-doutorado no Ceará há dois anos) revelou a mim algo importante sobre nossa cidade. Aqui, o passado é vivido, de um lado, como apagamento (não raro, prédios cuja arquitetura contam parte da história local são demolidos para dar lugar a estacionamentos ou farmácias); e, de outro, como a materialização de uma estética da ruína, como se diante dos escombros tudo que pudéssemos fosse produzir belos lamentos, à maneira das carpideiras.

Não quero com isso estabelecer uma comparação entre São Paulo e Fortaleza, pois a relação problemática com a memória se estende ao Brasil como um todo, o que se dá a ver, entre outras coisas, pelas tentativas históricas de recalcamento do racismo (muito acertadamente, Lélia Gonzales nomeou esse processo de “neurose cultural brasileira”).

Em Fortaleza, no entanto, o contato com o passado, seja pelo apagamento que faz com que a cidade vá mudando de cara numa velocidade estonteante, a fim de atender aos interesses de uma elite pouco afeita à cultura e que se constituiu pela imitação provinciana de tudo que vem de fora; seja pela estetização da ruína, parece atingir o paroxismo. Ambos, diferentes sintomas (um calcado no esquecimento que assume a forma de um movimento contínuo que a tudo devora; o outro, numa melancolia paralisante incapaz de se fazer ação) de uma mesma neurose. Diante das ruínas, o que fazer? 

Na tradição africana há um conceito, popularizado por Abdias do Nascimento, que nos ajuda a pensar possíveis saídas para esse impasse. Parte de um conjunto de ideogramas adinkra que mostra um pássaro com a cabeça voltada para a própria cauda, Sankofa significa o retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro (mesmo princípio no qual se baseia a clínica psicanalítica). 

Dessa maneira, entre a sanha destruidora do novo e o imobilismo saudosista do passado devemos escolher outro caminho, guiado pela sabedoria de África e pela experiência de outros povos diaspóricos, as quais encontram passagem e se confluem sob o abrigo da Casa do Povo e sua estrutura quase octogenária. Se, de acordo com a tradição talmúdica, a vida já começa em cima de ruínas, é nosso desafio erguer com elas outros mundos.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.