Bemdito

Precisamos falar sobre o desabamento do Teatro da Praia

Parte do equipamento mantido pelo ator Carri Costa na Praia de Iracema ruiu, reavivando velhas dores e dilemas dos artistas de teatro
POR Magela Lima
Foto: Carri Costa

Parte do equipamento mantido pelo ator Carri Costa na Praia de Iracema ruiu, reavivando velhas dores e dilemas dos artistas de teatro 

O Teatro da Praia é filho legítimo da Praia de Iracema, em Fortaleza. Nasce em 1993, na rua Senador Almino, e lá tem os seus dias de meninice. De 1996 em diante, passa a viver na José Avelino, ali pertinho, onde cresce e se torna referência para diferentes gerações de realizadores e espectadores. Nesse tempo todo, viu aquela região da cidade experimentar sabe-se lá quantas quase-mortes e outras tantas sobrevidas.

Na madrugada da quinta-feira, 27 de maio, quis o destino que a casa de tantas comédias e molecagens protagonizasse a sua primeira grande tragédia. É que parte do telhado do velho galpão que abriga o equipamento veio ao chão. O incidente mexe não só com os sonhos do ator Carri Costa, que tem dedicado a sua vida à manutenção do espaço, como também com a relação de Fortaleza com seus espaços teatrais.

Pelo menos desde 1830 – quando abriu as portas o Teatro Concórdia, localizado na esquina das atuais ruas General Bezerril com Guilherme Rocha, no Centro -, os nossos artistas da cena têm procurado se adequar à ideia de criar sob pedra e cal. A crença (não só lá no século XIX) é de que um teatro edificado elevaria a nossa arte a um patamar mais qualificado. Com o tempo, somou-se a tal pensamento a defesa de que um edifício teatral plenamente adequado a tais funções teria ainda o poder de transformar (e moralizar) a cidade como um todo. Assim, passamos a sonhar com um palco oficial. O sonho, vale dizer, foi longo. Em 1864, anuncia-se o projeto do Teatro Santa Teresa, que só se conclui 46 anos depois, com a inauguração do Theatro José de Alencar.

Historicamente, o Teatro da Praia não se filia a esse movimento. Ali, a criação não anda de parelha com um ideal de estrutura perfeita, mas, sim, com a magia e a liberdade do improviso. O que, para muitos, pode ser sinônimo de precariedade (cadeiras de plástico, falta de ar-condicionado) sinaliza, na verdade, para um outro entendimento do fazer teatral e de sua circulação. O Teatro da Praia anda à margem das regras de um teatro acadêmico, que se inviabiliza na ausência de uma carpintaria cênica adequada. É um lugar de encontros e palhaçadas inocentes. É, quiçá, o único espaço teatral de Fortaleza criado e administrado por artistas de teatro. Nesse sentido, faz lembrar o teatrinho do Grêmio Dramático Familiar.

Com o Theatro José de Alencar já impondo toda a sua grandiosidade, Carlos Câmara e sua trupe amadora, a partir de 1919, vão encantar a cidade como um reluzente ponto fora da curva daquela Fortaleza Belle Époque. Naquele palquinho de fundo de quintal, nasceu um dos mais importantes movimentos teatrais do Ceará e do Brasil. Carri Costa e seu Teatro da Praia, guardadas as devidas proporções impostas pelo tempo, também ocupam esse lugar de nascedouro, tendo contribuído decisivamente para a emergência de boa parte dos principais expoentes da nossa cena contemporânea. Foi no Teatro da Praia, por exemplo, que surgiu o importantíssimo Grupo Bagaceira, numa das edições do antigo Festival de Esquetes.

Voltemos, pois, à madrugada do último dia 27. O espaço, fechado desde março de 2020 por causa do agravamento da pandemia da Covid-19, desabou, e agora temos todos um problema, que se torna também um objetivo em comum. Empreendimento privado, mas de uso público, o Teatro da Praia precisa de ajuda. Já passou da hora, aliás, de Fortaleza assumir um compromisso mais expressivo com o equipamento. Ainda assustado, vivendo em meio aos entulhos, Carri Costa imagina que o socorro mais efetivo possa vir do poder público. Talvez. A julgar pela fragilidade dos equipamentos teatrais geridos pela Prefeitura e pelo Governo do Estado, melhor seria pensar em outras frentes. A cidade precisa entender a relevância daquele espaço e se mobilizar para que ele se erga novamente.

Os teatros públicos, sejam eles municipal ou ligado à universidade, são fundamentais; os teatros particulares, inclusive os de shopping, cumprem função essencial; mas uma casa de espetáculos pensada e capitaneada de forma independente por artistas é um teatro de uma feição ímpar, muito delicada e necessária. O Teatro da Praia, já faz tempo, deixou de ser um projeto pessoal de Carri Costa. É um espaço vital para a criação e para a poesia da cidade. É determinante que Fortaleza abrace esse teatro, entendendo que, particularmente nele, uma cena muito específica e preciosa se faz possível. Sem o Teatro da Praia, Fortaleza estaria abrindo mão desse tipo de fazer teatro.

Casa da Ribeira, a inspiração
Logo ali em Natal, no Rio Grande do Norte, o funcionamento da Casa da Ribeira, que completou 20 anos de atividade agora no último dia 6 de março, ajuda um pouco a compreender o quão fundamentais são esses teatros de artistas. Imaginado nos bastidores do grupo Clowns de Shakespeare como uma alternativa de tornar menos intermitente a produção teatral na capital potiguar, a Casa da Ribeira hoje organiza e conduz diferentes práticas criativas na cidade. Basta dizer que os dois teatros públicos de Natal, o Teatro Alberto Maranhão e o Sandoval Wanderley, estão fechados para reforma há um perder de vistas. Sem um palco oficial, no entanto, o teatro de Natal segue seu rumo porque a Casa da Ribeira, um teatro particular, um teatro de artistas, cumpre essa função.

Absolutamente distinta do ponto vista físico, mas muito próxima do Teatro da Praia em essência, a idealização da Casa da Ribeira carrega questões muito significativas. À frente da iniciativa desde início do projeto, o ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes diz que o grande trunfo da gestão da Casa da Ribeira foi, desde sempre, trazer a cidade, as pessoas da cidade, para dentro do espaço, mobilizando em todos o desejo de que aquele teatro tivesse condições de funcionamento. A cada dificuldade (lá, também, elas são muitas), Natal é provocada: “E aí, vai deixar fechar?”.

Na capital do Rio Grande do Norte, a estratégia tem dado certo e pode dar certo em outras praças também. Tentemos, pois, replicar o mesmo por aqui. Então, Fortaleza, nós vamos deixar fechar o Teatro da Praia? Porque desabar, nós já permitimos que desabasse.

A quem interessar possa, tem rolado uma campanha de arrecadação (via PIX: 05.461.443/0001-01) para ajudar na reconstrução do Teatro da Praia. Qualquer valor é bem-vindo.      

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.