Bemdito

Psicanálise, narrativa e trauma: um museu de grandes novidades

Como o passado de cada sujeito e os retrocessos sociais se relacionam para formar um museu psicanalítico
POR Carolina Mousquer Lima

Como o passado de cada sujeito e os retrocessos sociais se relacionam para formar um museu psicanalítico

Carolina Mousquer Lima
carolinamousquer@gmail.com

Sonhei que havia um homem na sala de jantar dos meus avós. Ele vestia um casaco de lã, pesado, da SS. Era uma das muitas peças da Segunda Guerra Mundial que tinham sido compradas em um leilão. Eu me perguntava: por que ele está usando peças que deveriam estar em um museu? Esse homem está por aí. No lugar de um casaco, ele carrega faixas que pedem intervenção militar. Não há casaco de lã que o retire desse inverno da alma. Para quem está impossibilitado de sonhar com um futuro, só resta vestir as roupas do passado.

Todo psicanalista testemunha os efeitos do passado no presente do seus pacientes. Experiências ruins não determinam, necessariamente, o destino de ninguém. Tudo depende do que o sujeito decide fazer com essas experiências, se tiver a possibilidade de narrá-las a alguém. Naturalmente, essa decisão não é autônoma, não é uma decisão consciente.

Mas isso não exclui a nossa responsabilidade, como sujeito, e também não nos permite delegar ao outro a função de resolver o que nos aconteceu. De todas as possibilidades sobre o que fazer com uma experiência difícil, a pior delas, sem dúvida, é nada querer saber a respeito, varrer para baixo do tapete, colocar uma pedra em cima. Por quê?

Porque a clínica nos ensina que nunca dá certo. Simples assim. Em experiências difíceis, colocamos palavra em cima, e não pedra. O nosso inconsciente tem uma força descomunal e ele não move só pedras – ele move pedreiras, se for preciso. E isso se dá à nossa revelia. Ninguém comanda o inconsciente. Então, quando se coloca uma pedra em cima, cedo ou tarde, essa experiência retorna. E retorna da pior forma. Retorna como alienação. E passamos a carregar um peso extra na caminhada, desconhecendo que o carregamos.

Falar sobre o passado, ao contrário do que parece, não é fazer dele o presente. Também não é interromper o olhar para o futuro. É, ao contrário, ativá-lo. E a intenção dessa intervenção é tornar o passado uma peça no museu. É se tornar dono desse passado, fazendo dele uma herança, valendo-se dele para construir o presente. É, portanto, não ser comandado por ele. Trata-se da única forma de não ser condenado a uma repetição infinita de experiências dolorosas. É sobre liberar uma possibilidade de futuro. E é preciso coragem para arriscar viver algo novo.

Retornando ao sonho. Por que as peças deveriam estar em um museu? Um museu, ao contrário de um calabouço, é onde exibimos o passado, onde o colocamos sob os holofotes, mas dentro de um enquadre determinado. No museu, o passado não está nem escondido, nem andando por aí, no presente. Colocá-lo nesse lugar tem duas funções. Uma delas é que outros possam ver, testemunhar, o que aconteceu. E isso não é pouca coisa: é o que nos salva da loucura. Cada um terá vivenciado esse passado de uma forma singular. Mas é muito importante saber que outros também viram, que aquilo de fato aconteceu, pois duvidar da própria experiência traumática é enlouquecedor.

A outra função é possibilitar que algo se fale a respeito do que aconteceu. Ao contar, transmitimos a experiência em forma de palavra, de narrativa, libertando a si e aos outros de uma repetição sintomática. Quando o passado é sombra, ele apenas assombra o presente e impede o porvir. Psicanalistas apostam que o passado possa ser uma lanterna para nos guiar no caminho de um futuro novo.

No passado recente do país, também vivemos algo novo: o acesso de muitas pessoas negras e pobres a lugares antes reservados à elite branca. O que não nos permitiu sustentar essa mudança por muito tempo foi, justamente, o quanto essa novidade tocou em pontos frágeis e impedidos da nossa história. Não é por acaso que grande parte do novo cenário político começou a desenhar-se, justamente, com o que veio à tona na Comissão Nacional da Verdade.

Encontrar-se com o passado requer a coragem de lidar com verdades difíceis. E toda a resistência e a tentativa de silenciamento só confirmam que estamos no caminho daquilo que produziu nosso trauma. Diante de tantos retrocessos no presente, sabemos que o que se viveu como novidade estará guardado em algum lugar da memória, cumprindo a função de nos lembrar que existe outra forma de sermos Brasil. Aí vemos o passado revelando sua potência de criar um futuro.

Na aposta de fazer do passado uma narrativa, colocando a palavra em circulação, foi lançado no último dia 22 de maio, o Museu das Memórias (In)possíveis, vinculado ao Instituto Appoa – clínica, intervenção e pesquisa em Psicanálise, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Mas um detalhe importante: o museu propõe colocar em circulação a palavra de quem sempre teve o acesso a ela negado. Porque enquanto somente as figuras de sempre falarem, o futuro estará condenado a ser um museu de grandes novidades, como cantou Cazuza.

Carolina Mousquer Lima é psicanalista e está no Instagram.

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.