Bemdito

É possível escutar para além de si mesmo?

Por uma psicanálise decolonial, capaz de conferir a mesma diversidade encontrada na sociedade brasileira
POR Leonardo Araújo

Por uma psicanálise decolonial, capaz de conferir a mesma diversidade encontrada na sociedade brasileira

Leonardo Araújo
araujovleonardo@gmail.com

Há quase um ano, faço parte de um “cartel” – modalidade de trabalho inventada por Jacques Lacan para a transmissão e o ensino – intitulado Psicanálise, Sujeito e Racismo. Apesar de ser um assunto que interessava desde o início de minha trajetória, a escassez de seminários e eventos que o levassem para dentro das escolas de psicanálise adiou o encontro com outras pessoas interessadas em realizar uma reflexão aprofundada sobre o tema.

Tal “falta”, conceito muito apreciado por analistas, era algo com o qual eu vinha lidando de forma mais ou menos solitária no cotidiano de meus atendimentos na Clínica Livre – Núcleo Bonja, um dos projetos de clínica pública desenvolvidos desde 2019 pela Margem – coletivo de psicanalistas do qual faço parte, que atua no Grande Bom Jardim, em parceria com o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), proporcionando escuta não mediada pelo dinheiro a pessoas impossibilitadas de pagar por tratamento.

Diferente das clínicas privadas, cujo público, em geral, é majoritariamente branco, a Clínica Livre atende pessoas racialmente diversas e territorialmente localizadas em uma região da cidade onde grassa o descaso do poder público, o racismo estrutural e a violência cotidiana praticada contra corpos negros. Em um contexto tão complexo quanto esse, e sendo eu um analista branco, formado no enquadramento de uma epistemologia europeia, impôs-se a mim a necessidade de construir um repertório que me permitisse uma escuta capaz de dialetizar a narrativa de sintomas e traumas sem reproduzir a violência simbólica e o racismo ao qual aquelas pessoas eram costumeiramente submetidas.

Aos poucos, fui me familiarizando com os textos e as ideias de Grada Kilomba, Lélia Gonzales, Franz Fanon, Neusa Souza, Isildinha Batista, Maria Aparecida Bento, entre outros(as) – autores e autoras cujo pensamento fazia uso da psicanálise de maneira a torcer seus conceitos e problematizar as relações de poder que marcaram profundamente não apenas esse saber, mas também toda a modernidade. Em que pese ainda serem solenemente ignorados pelo status quo analítico, sua proposta de uma psicanálise brasileira, atenta aos processos sócio-históricos que estão na base da formação do Brasil, vem ganhando importância cada vez maior.

No esteio dessa produção e da experiência compartilhada no cartel, chegou a mim um artigo de autoria do psicólogo negro Lucas Veiga, intitulado Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Ao lê-lo, fui profundamente afetado por uma pergunta que até então eu não havia sido capaz de formular: “Os psicólogos brancos suportariam a redistribuição da violência racial no setting? Quando a transferência negativa é, na verdade, violência criadora, o psicólogo branco sabe manejar?”, questiona o psicólogo.

Para pensar isso, Lucas propõe um diálogo com Praça Paris (2017) da cineasta Lucia Murat. O filme narra a história de uma jovem psicanalista portuguesa e branca chamada Camila, que viaja ao Brasil para realizar mestrado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Como parte das atividades, começa a participar do programa de atendimento ao público da instituição, e é quando encontra Glória, mulher negra que trabalha como ascensorista da universidade.

De início, a relação pouco foge ao protocolo das sessões analíticas convencionais. Ensinada a não atender às demandas dos pacientes, Camila ouve atentamente à narrativa, mas sem responder às interpelações que a mulher lhe dirige, na tentativa de estabelecer algum laço de empatia e confiança que a possibilitasse revelar acontecimentos nunca relatados. Sem saber como se portar, Camila ruborizava ante os comentários de Glória, preservando, a todo custo, a frágil separação que havia entre as duas.

Mas, à medida que a paciente contava sua vida, marcada por traumas profundos, a escuta foi se tornando cada vez mais insuportável à Camila, a ponto de começar a estabelecer um sentimento negativo em relação à mulher. Para a portuguesa, torna-se impossível compreender e aceitar a naturalização da violência que Glória foi obrigada a realizar apenas para conseguir sobreviver. Há uma cena específica que diz muito sobre a dinâmica transferencial estabelecida ali. Como parte das histórias que permeiam seu cotidiano, Glória divide com a analista uma ocasião em que, ao ser chamada de “puta” por uma mulher da comunidade onde morava, decide levar o fato ao irmão, chefe do tráfico que se encontrava preso. Como punição, o homem resolve amarrar e humilhar a “infratora”, filmando a cena para, em seguida, distribuí-la pela Internet.

Em razão da postura de Glória, para quem a justiça institucional não passava de uma abstração perversa, a psicanalista abandona seu lugar de escuta e a interpela pela atitude que considera inaceitável. Diante da falta de conhecimento a respeito do contexto social onde a mulher cresceu – repleto de racismo, violência e abandono -, Camila não consegue continuar a relação terapêutica. Sua escuta está tão “embranquecida”, como define Lucas, que acaba por reproduzir contra a paciente a série de traumas e rejeições que pontuaram a vida desta.

Completamente desestabilizada pelos relatos de Glória, ao se dar conta da brutal violência praticada contra corpos negros no Brasil, a analista passar a temer o contato com a mulher – esta mencionou à terapeuta que o irmão preso desaprovava suas idas ao consultório –, desenvolvendo um medo irracional diante de pessoas parecidas com a ascensorista, no que Elsa Dorlin (2020) define como “paranoia branca”. Para a portuguesa, todo corpo negro que encontra na rua representa uma ameaça a sua própria integridade.

Assisti ao filme na “ponta da cadeira”, angustiado pela incapacidade de Camila – cuja formação jamais lhe preparara para situações como aquela – conduzir o caso. Em face do aparecimento do corpo do sujeito do inconsciente, com seus traumas e suas marcas particulares, tudo o que pode oferecer à paciente, além da própria angústia, foram novas camadas de violência simbólica.

Ao levar o filme para discussão no cartel, entendi que a questão que se colocava para mim, na experiência de escuta de pessoas negras, era como apontar, a partir de minha branquitude, os “limites” do racismo em suas falas, de modo a que este não representasse a totalidade de suas vidas subjetivas. Em outras palavras, como levar o processo terapêutico adiante sem incorrer nas mesmas violências cometidas por Camila.

Embora não haja resposta pronta a essas perguntas, Lucas Veiga aponta um percurso cujo traçado requer um novo compromisso epistemológico – uma psicologia ou psicanálise decolonial que dê o devido peso aos efeitos produzidos pelo racismo nas subjetividades negras. E que, além disso, possibilite-as dizer “não” aos discursos hegemônicos brancos, pela elaboração de narrativas próprias e pela recuperação de sua história.

A isso, eu acrescentaria a necessidade de ampliação dos espaços de escuta e de formação analítica, construindo uma prática capaz de conferir aos lugares, especialmente onde a psicanálise é levada a efeito, a mesma diversidade encontrada na sociedade brasileira. Para que a saúde mental deixe de ser um privilégio branco, é preciso, entre outras coisas, enegrecer a psicanálise. Ou, na afirmação de Lucas, “perfurar a branquitude com os ossos da fratura exposta que o racismo produziu em nós e ver o sangue branco se misturar ao nosso sangue negro até que ambos fiquem vermelhos”.

Resta saber se nós, psicanalistas brancos, estaremos à altura dessa tarefa.

Leonardo Araújo é psicanalista e pesquisador em antropologia/sociologia. Está no Instagram.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.