Bemdito

Crepúsculo de uma raça

Sobre a morte de Monte Hellman, autor de filmes vagabundos para almas grandes, na semana do Oscar
POR Cauby Monteiro

Sobre a morte do diretor americano Monte Hellman, autor de filmes vagabundos para almas grandes, na semana do Oscar

Cauby Monteiro
cauby.ecm@gmail.com

No último dia 20 de abril, morreu Monte Hellman, aos 91 anos. A maioria dos cinéfilos – ou seja lá como chamam os que veem filmes, mas não vão ao cinema – conhece o nome e já deve ter visto pelo menos seu filme mais famoso, Two-Lane Blacktop (Corrida Sem Fim, no Brasil, 1971), um dos marcos do cinema contracultural americano, estrelado pelos músicos Dennis Wilson e James Taylor. Para além desse filme, Hellman sofreu, como bem aponta Bill Krohn, períodos de reconhecimento e de esquecimento que se revezaram durante sua carreira, especialmente durante o longo hiato de 21 anos entre Silent Night, Deadly Night 3, de 1989, e Road to Nowhere (Caminho para o Nada, no Brasil), de 2010. Não que ele tenha se tornado um ermitão durante o período: deu aulas de cinema, produziu filmes (o mais famoso, sem dúvida, sendo Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino) e chegou a dirigir um média para uma coletânea de horror, Trapped Ashes, em que conta uma história curiosa de como uma bela vampira contribuiu para a fuga de Stanley Kubrick para a Inglaterra.

É difícil encontrar uma razão exata para essa gangorra de importância que dão a Hellman, mas a verdade é que a própria inconstância de sua carreira seja um dado relevante para o fenômeno. Seu filme mais famoso sem dúvida é Two-Lane Blacktop. No entanto, é um dos filmes mais únicos na carreira do diretor: os planos longos, com nenhum ou pouco movimento de câmera; a mistura, característica da época, do que é essencialmente americano – ou seja, a adoração aos carros, a competição, a misoginia – com aquilo que crescia na juventude da época para subjugar esses preceitos conservadores, como a liberdade sexual, a ideia de estrada enquanto casa, o hippieismo; e a escolha de músicos famosos para estrelar o filme, que vão passar quase a duração inteira de maneira lacônica, imóveis, em contraste com a violência dos motores e a velocidade dos carros, além da própria verborragia dos dois atores hellmanianos por excelência: Laurie Bird e Warren Oates. E ainda aquele final: com o som do motor do carro se misturando ao som do filme no projetor, e ainda a combustão da película na tela. Mais Antonioni que Antonioni.

Quem buscava a mesma coisa no filme seguinte de Hellman ia quebrar a cara. Cockfighter (Galo de Briga, 1974) é um filme solar, um dos maiores presentes dados a um intérprete por um diretor. Warren Oates, o maior ator dos anos 70, interpreta um criador de galos de briga, que deixou escapar a chance de ganhar o campeonato de melhor cockfighter do ano por falar mais do que devia e prometeu que, até conseguir ganhar, nenhuma palavra sairia de sua boca. Apesar de manter esse mutismo dos personagens principais do filme anterior, a interpretação de Oates é quase mais verborrágica do que a de GTO, seu papel em Two-Lane. O poder dele de se comunicar através de gestos e expressões faciais é impressionante. E se o filme se torna polêmico hoje por mostrar lutas reais entre galos de briga, a câmera livre de Hellman encontra um par perfeito no corpo eloquente de Oates. Assim, o filme é dotado de uma leveza e sensação de felicidade que poucos filmes americanos da época conseguem evocar. Um filme em que a beleza jorra a cada plano, seja ela da última atuação de Laurie Bird, que partiu cedo demais, da luz mágica de Néstor Almendros ou do final que consegue colocar delicadeza no horror.

Monte Hellman nunca fez um filme com orçamento decente. Até mesmo em Two-Lane ele brincava que o seu salário seria ótimo para comprar bolachas por uns dois anos. Trabalhou com Roger Corman, como muitos dos cineastas da época em começo de carreira, mas não encontrou, nem de longe, o mesmo sucesso de Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, mesmo que ache que tenha feito filmes muito melhores. Fez filmes de encomenda, fez western spaghetti, fez continuação de slasher oitentista de “categoria z”. Nunca deixou de amar o cinema, de conhecer filmes (admirava Ermmano Olmi e Victor Erice, quando eram cineastas praticamente desconhecidos nos Estados Unidos), de buscar fazê-los – mesmo que sem sucesso, na maioria das vezes – e de produzir algo completamente novo a cada vez. Iguana, um filme que nos ensina sobre como homens terríveis são também homens, um filme único sobre como filmar o rosto de uma pessoa, por mais asqueroso que seja. Um filme que contou com a música de sua amiga, Joni Mitchell. Não é difícil pensar – considerando o apreço que os dois tinham pela liberdade em uma indústria sufocante, pela possiblidade de transmutar a dor em pensamento e conforto – que, de alguma forma, Hellman foi uma Mitchell no cinema, e Iguana, carinhosamente dedicado a Warren Oates. Uma prova de mostrar isso:

Every picture has it shadows
And it has some source of light
Blindness, blindness and sight
The perils of benefactors
The blessings of parasites
Blindness, blindness and sight
Threatened by all things
Devil of cruelty
Drawn to all things
Devil of delight
Mythical devil of the ever-present laws
Governing blindness, blindness and sight

Hellman conseguiu fazer, depois de 20 anos, um dos filmes mais belos da década passada, que infelizmente não é mais falado, ou é considerado um filme menor hoje. Talvez o último grande filme da tradição que Um corpo que cai inaugura no cinema. Sobre ele talvez valha a pena escrever com mais detalhes depois, mas, aos que puderem e quiserem, fica o pedido que deem uma chance a Road to Nowhere. Por tudo o que falei até aqui, vai ser algo que não se encontra hoje em nenhum outro filme, especialmente vindo de Hollywood. As promessas de uma carreira retomada não foram cumpridas, e o último filme de Hellman foi um curta de 90 segundos, feito para a comemoração dos 70 anos da Bienal de Veneza. Noventa segundos em um plano que, incrivelmente, perpassa a história do cinema no tempo de um amor rompido. Nele, estão seus dois últimos atores, dois ótimos atores também renegados hoje – especialmente, Shannyn Sossamon, atriz gigante, que, em um minuto e meio, entrega uma atuação mil vezes melhor que de todas as ganhadoras do Oscar nos últimos 10 anos.

Por falar em Oscar, Hellman, esse homem da Califórnia (mesmo tendo nascido em Nova Iorque, de nome Himmelbaum), que trabalhou com Jack Nicholson nos filmes realizados para Roger Corman e deu a Nicholson pelo menos dois filmes memoráveis (os western Ride in the Whirlwind e, especialmente, The Shooting); que deu alguns dos primeiros e melhores papéis a Michael Madsen, Warren Oates e Harry Dean Stanton; que produziu Cães de Aluguel; esse homem do cinema americano não teve seu nome entre os homenageados no in memoriam do Oscar, mesmo tendo falecido na semana da premiação. Mas a verdade é que só chamo a atenção ao fato caso alguém se pergunte. Porque nada mais justo que Hellman não ser lembrado. O Oscar, nos últimos anos, serve para celebrar e premiar filmes grandes (porque custam muito) feitos para almas vagabundas (porque sentem pouco). Monte Hellman fazia filmes vagabundos (porque custavam pouco) para almas grandes (porque sentem muito).

Dois mundos na mesma cidade,

Fare thee well, Mr Monty Hell.

Cauby Monteiro é cineclubista e cineasta.

PS: Gostaria de dedicar este texto a outra partida nessa mesma semana. Não sei se meu pai conhecia Monte Hellman, mas ele foi o responsável por me apresentar Kurosawa, Leone, Kubrick, Carpenter entre tantos outros diretores, escritores, poetas, músicos. Espero que continue vendo filme e lembrando de mim onde quer que esteja. Eu estarei fazendo o mesmo.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.