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Novos ventos para a América Latina?

O que podemos esperar do processo constituinte chileno e por que a paridade de gênero é essencial para a política latino-americana
POR Geórgia Oliveira
Foto: J Pereira

O que podemos esperar do processo constituinte chileno e por que a paridade de gênero é essencial para a política latino-americana

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

Nesta semana, brinquei com alguns amigos sobre a minha vocação para ser sommerlier de desgraças. Como pesquisadora de violência, meus dias são divididos entre os crimes que vou estudar hoje e aqueles que analisarei amanhã. Isso se reflete na minha coluna, como os leitores já devem ter percebido. Semanalmente, apresento alguma reflexão que percebo ser mais relevante entre aquelas questões sérias, difíceis e até hediondas que estão em evidência durante a semana. Vivendo assim, a esperança é um sentimento raro. No entanto, um sopro de ar fresco passou por nós esta semana a partir do Chile.

O país, que convive com uma Constituição herdada do regime ditatorial de Pinochet, além de ter políticas neoliberais que deterioraram a qualidade de vida da população, votou em outubro de 2020 para que houvesse um processo constituinte – desta vez, democrático. E mais: marcado pela paridade de gênero.

Das 155 cadeiras destinadas aos constituintes chilenos, pelo menos metade delas deveria ser ocupada por mulheres, candidatas independentes ou filiadas a partidos políticos. Essa paridade foi estendida por todo o processo eleitoral, desde a criação das listas de candidatas e candidatos, até o ajuste final daqueles eleitos para representar cada distrito. Além disso, representantes de 10 povos originários chilenos garantiram, desde o início do processo, 17 cadeiras reservadas para que os interesses dessa população fossem assegurados na nova Constituição.

Os resultados da eleição para os representantes constituintes chegaram na segunda-feira, 17, e são muito animadores. A CNN Chilena, ao contabilizar quantos candidatos de cada gênero foram eleitos, apontou como resultados iniciais 81 mulheres e 74 homens. Os ajustes para garantir a paridade de gênero, na verdade, tiveram de ser utilizados para que os homens não deixassem de ter representação em alguns distritos, o que ainda levou a um número majoritário de mulheres eleitas: 79 a 76.

Além disso, candidaturas independentes (formadas por ativistas sociais, profissionais liberais, professores, cientistas, escritores, jornalistas, advogados, entre outros) e também de esquerda formaram a maioria dos eleitos, em contraposição à baixa representação do bloco direitista, base do atual presidente Sebástian Piñera.

Uma Constituição é muitas coisas: uma carta de direitos, um documento que guia o funcionamento e a organização dos poderes e define o papel do Estado, um programa de objetivos fundamentais para o futuro de um povo, um novo pacto político e social dentro de um país. Este será o primeiro processo constituinte do mundo marcado pela paridade de gênero e pela presença expressiva de povos tradicionais, segmentos populacionais que sempre estiveram à margem da definição desses direitos, do papel estatal e dos objetivos nacionais, não somente no Chile, mas em toda a América Latina (para falar apenas do nosso contexto).

Embora outros países tenham aprovado legislações que buscam mitigar a sub-representação feminina em cargos políticos, como as cotas partidárias de gênero no Brasil e a paridade de cargos públicos no México, essas iniciativas se dirigem a uma estrutura política que já está posta. No Chile, há chance de que essa estrutura seja reconstruída.

As formulações de feministas latino-americanas sobre as possibilidades de um constitucionalismo feminista poderão ser observadas pela primeira vez nesse processo. É claro que a representação feminina na política não se confunde com a representação de anseios feministas, que dependem de um conteúdo nem sempre encampado politicamente pelas mulheres.

Mas, na Constituinte chilena, poderemos observar a paridade de gênero para além da mera representatividade, muitas vezes vazia de conteúdo. O movimento feminista do Chile, que foi parte essencial dos protestos que levaram ao rechaço da Constituição de Pinochet, conseguiu eleger muitas representantes, tanto independentes, quanto vinculadas ao bloco de esquerda.

É a chance de colocar na pauta principal temas caros às mulheres latino-americanas, e de vê-los afirmados na Constituição, como os direitos sexuais e reprodutivos, a interrupção legal da gravidez, o combate à violência doméstica e ao feminicídio, a igualdade nos direitos civis e nas relações trabalhistas.

É o momento de afirmar os direitos das mulheres indígenas do Chile, que compõem a maioria das representantes dos povos originários. É também a chance de questionar o modelo de Estado neoliberal que privatizou e encareceu serviços básicos, como o acesso à água e à educação, assentando novas bases de justiça social e mudanças estruturais para o futuro do Chile. É nesse campo especulativo da transformação social e, ao mesmo tempo, bastante concreto de anseios e direitos historicamente negados, que as representantes constituintes chilenas poderão redigir uma nova Constituição.

Quais direitos serão discutidos e afirmados no texto constitucional? O que será exigido do Estado chileno após a Constituinte? Que propósitos serão considerados para o bem comum do povo chileno? Quais compromissos sociais serão assumidos pela nova Constituição? Essas são indagações que só terão uma resposta ao final do processo constituinte, daqui a um ano.

Embora o bloco independente seja alinhado, majoritariamente, aos ideais de esquerda, o que poderá transformar enormemente a estrutura do Estado chileno que não se dedica aos serviços públicos, esses representantes apartidários podem ser instáveis. Além disso, ainda não se sabe como as negociações políticas acontecerão e se a direita conseguirá formar alianças para alcançar a marca de um terço das cadeiras, correspondente aos votos necessários para vetar propostas na Assembleia.

Uma coisa é possível afirmar: o histórico de protestos no Chile deixou clara a intenção popular de avanço obrigatório rumo a um regime político e jurídico verdadeiramente democrático. Desde 2019, os movimentos sociais chilenos enfrentaram violações generalizadas de direitos humanos ao longo dos protestos: prisões arbitrárias, mortes, desaparecimentos forçados, casos de violência sexual cometida por agentes de estado e mais de 460 pessoas atingidas por bala de borracha que tiveram lesões oculares. A conquista desse processo constituinte teve um custo alto e, reassistindo aos vídeos da performance Um violador em tu camino, penso que a transformação no Chile é inevitável e feminista. Resta saber que tamanho essa transformação terá.

Se um processo constituinte é um salto no escuro rumo a um novo pacto político e social, que pelo menos esse salto seja embalado pela voz de Violeta Parra, cantando Gracias a la vida. E no Brasil, que ainda amarga o atraso de um regime conservador, qual será a trilha sonora da mudança em 2022?

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.