Bemdito

A luta antimanicomial: um avanço civilizatório em xeque

Desmonte da política de saúde mental no Brasil sob Bolsonaro coloca em risco a Reforma Psiquiátrica
POR Rita Monteiro
Foto: Divulgação/Geração Editorial

Desmonte da política de saúde mental no Brasil sob Bolsonaro ocorre em meio à pandemia da Covid-19

Rita Monteiro
paiva_monteiro@yahoo.com.br

O dia 18 de maio comemora a Luta Antimanicomial no Brasil. A data tornou-se um marco por significar o início da organização social pelo fim dos manicômios no país, em 1987. O grupo denominado Movimento de Luta Antimanicomial, que agrega profissionais da área de saúde mental, estudiosos, ex-internos e familiares de internos, consolidou-se como um articulador político de grande relevância, principalmente no momento da redemocratização do país, na esteira de outros “novos movimentos sociais”, como: movimento negro, movimento feminista, movimento de meninos e meninas de rua, entre outros.

O Brasil tem uma tradição de instituições psiquiátricas violentas, que se inicia com a inauguração do Hospício Pedro II, em 1852, e se mantém durante mais de um século com a fundação de milhares de outros espaços manicomiais, espalhados pelo país, que sempre se configuraram como locais de abandono de vulneráveis, de descarte de indesejáveis, de depósito dos “inumanos” e de incipientes cuidados. De lá, muitos só saíam após a morte, depois de anos de violência física (espancamentos, eletrochoques, contenção física e mecânica), violência psicológica e abandono social.

Devo salientar que, no período da ditadura militar (1964-1985), houve, por parte do governo brasileiro, um investimento consubstancial para a ampliação dessas instituições no Brasil. Consequentemente, ocorreu um aumento no número de internações, tornando a “indústria da loucura” um negócio altamente rentável. A terceirização do atendimento psiquiátrico para a rede privada foi feita através de convênios com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

A literatura (Lima Barreto), o jornalismo (Daniela Arbex), a cinegrafia (Bicho de sete cabeças), aliados à academia, já forneceram ao país e ao mundo informações sobre as características desumanas dos hospitais psiquiátricos brasileiros. O ápice da visibilidade do Brasil no que diz respeito aos (não) cuidados das pessoas em “sofrimento psíquico” ocorre com a morte de Damião Ximenes em 1999, vítima de maus tratos em um hospital psiquiátrico em Sobral (CE). O caso levou o Brasil a “sentar-se” no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de onde saiu condenado.

O Movimento Antimanicomial, inspirado pela Psiquiatria Democrática Italiana, expôs, através de conferências e debates, as questões contundentes do atendimento à saúde mental no Brasil. E apontou para novas possibilidades de atendimento a esses sujeitos através de serviços diferenciados, com foco na discussão de extinção dos manicômios, sob o slogan Por uma sociedade sem Manicômios.

A efervescência das discussões em torno do atendimento à saúde mental no Brasil trouxe o Poder Legislativo ao debate, o que resultou na aprovação em 2001 da Lei 10.216, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica. O mecanismo introduziu importantes mudanças para a assistência das pessoas com transtornos mentais, criando o atendimento ambulatorial regionalizado, com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e ensejando o fechamento de vários hospitais psiquiátricos.

A norma também levou à proibição da internação involuntária sem a devida comunicação ao Ministério Público e à proibição da utilização da eletroconvulsoterapia em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). A Lei da Reforma Psiquiátrica, sem dúvida, teve como elemento norteador o artigo 5º da Constituição Brasileira de 1988, que prevê a proibição à tortura e ao tratamento degradante, e procura estabelecer um novo modelo de assistência psiquiátrica, tornando-se um marco civilizatório no que diz respeito a esse serviço.

Durante o governo de Michel Temer, já se pôde vislumbrar o retrocesso das conquistas alcançadas pela Reforma Psiquiátrica. Entre 2016 e 2017, várias ações nesse sentido foram perpetradas desde a Emenda Constitucional (EC) 95, tais quais o reajuste em 60% no valor das diárias em hospitais psiquiátricos e a redução do cadastramento dos CAPS.

A chegada de Jair Bolsonaro ao poder em 2019 marcou, portanto, a continuidade da “descontinuidade” iniciada por Temer. Nesse mesmo ano, o Ministério da Saúde publicou um documento de 32 páginas, onde elencou as mudanças na Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, com o reforço estratégico do hospital psiquiátrico.

No documento, há o aval para a utilização da eletroconvulsoterapia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com permissão para a internação de crianças nos hospitais psiquiátricos. O foco é na internação dos dependentes químicos em detrimento da política de redução de danos, já em uso no país há mais de 30 anos. Para tanto, o governo ampliou as vagas nas Comunidades Terapêuticas com um repasse de R$ 100 milhões. De acordo com pesquisas acadêmicas, essas Comunidades são compostas por cerca de 70% de instituições de orientação religiosa.

O desmonte segue mesmo em meio à pandemia de Covid-19. De acordo com a mídia nacional, em dezembro de 2020, o governo Bolsonaro preparou a revogação de cerca de 100 portarias que tratam sobre saúde mental no SUS, criadas entre 1991 e 2014. A proposta do “revogaço” já foi apresentada ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e aos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS). Em abril deste ano, houve uma audiência na Corte Interamericana para cobrar do Brasil o retrocesso nas políticas públicas de saúde mental no país.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil foi, ao longo dos anos, um processo lento, mas constante, que ainda é considerado inconcluso. Os valores inerentes à Reforma se consolidaram durante 23 anos, por meio de políticas públicas que se interligam em rede. Agora, porém, essa rede está sob desmonte.

A emergência de um Estado neoliberal, o fim de um projeto político de bem-estar social, o acirramento das desigualdades, o apoio de uma parte substancial da população evangélica bolsonarista, o ódio pelas populações mais vulneráveis e o desrespeito às diferenças são componentes que contribuem para ameaçar o patamar civilizatório que conseguimos alcançar no atendimento às pessoas em sofrimento psíquico. Diante de uma pandemia que tem afligido a população de tantas maneiras, é também necessário reafirmarmos nosso compromisso com essa luta e seguirmos vigilantes.

Rita Monteiro é doutora em sociologia pela UFC, pós-doutoranda em Direito Constitucional na UNIFOR e pesquisadora na área de dependência química e saúde mental. Está no Instagram.