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Por que chorar Paulo Gustavo

Morto precocemente em 4 de maio, ator deixa um legado de dedicação aos palcos e de crença na potência do teatro
POR Magela Lima

Morto precocemente em 4 de maio, ator deixa um legado de dedicação aos palcos e de crença na potência do teatro

Magela Lima
lima.magela@gmail.com

É estranho, mas muita gente, talvez por pensar no teatro como algo escondido por uma empoeirada cortina de veludo vermelho, entende essa linguagem como expressão de uma mídia velha, ultrapassada. Há quem inclusive torça o nariz até mesmo para pensar o teatro – considerado, via de regra, parte de uma cultura alheia às invenções tecnológicas no campo da comunicação, como uma mídia.

Paulo Gustavo, ao longo de sua trajetória como ator, sempre apontou sua criação para uma compreensão de outra natureza. A arte de Paulo Gustavo, organizada profissionalmente num recorte que, infelizmente, não chega a 20 anos, dá conta de um livre trânsito entre plataformas de circulação, além de sublinhar a possibilidade de o teatro funcionar, também, como um produto para as massas. 

Formado pela Casa das Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, na turma de 2004, Paulo Gustavo mudaria, definitivamente, a sua vida com a estreia do solo Minha mãe é uma peça, dois anos mais tarde. A comédia, que nasceu da colaboração de alguns amigos mais chegados do artista, como o diretor João Fonseca, e contou com um orçamento improvisado em torno de R$ 3 mil, posiciona o ator, em definitivo, na história do recente teatro brasileiro.

Dali em diante, Paulo Gustavo conseguiu se fazer um dos grandes, dos gigantes, aliás. Ele se transformou, enquanto transformou um espetáculo, que deveria ser apresentado originalmente numa sala com 100 lugares, em uma atração capaz de lotar, superlotar, ginásios esportivos. Paulo Gustavo tornou-se uma figura tão popular com o teatro, que a televisão e o cinema tiveram que se adaptar para recebê-lo como um artista de teatro. 

Ao migrar dos palcos para as telas, Paulo Gustavo mantém o título original, Minha mãe é uma peça, para a sua sequência de longas-metragens, como que para reforçar suas origens. Aquilo que as pessoas estavam sendo convidadas para ver no cinema tinha, na verdade, uma história anterior que ele sempre fez questão de realçar. Ao lado de uma exitosa performance nas salas de cinema, Paulo Gustavo nunca deixou de apostar numa comunicabilidade massiva do seu teatro. Ele sabia falar com muita gente.

Assim, as bilheterias volumosas dos filmes – Minha mãe é uma peça 1, de 2013, foi visto por um público de 4,6 milhões de espectadores; a sequência, de 2016, chegou à marca de 9,8 milhões; e Minha Mãe é uma peça 3, de 2019, superou os 11,5 milhões – somam-se à experiência vigorosa de Paulo Gustavo nos palcos, com o espetáculo Minha Mãe é uma peça contabilizando um público de mais de três milhões de espectadores.  

A trajetória de sucesso de Minha mãe é uma peça, com a personagem principal, a memorável Dona Hermínia, expandindo-se por várias mídias e linguagens, saindo do campo das artes para estrelar campanhas publicitárias até, associa-se a outras montagens teatrais recentes no Brasil, que se destacam, particularmente, pela longevidade e ampla projeção de público. É o caso de Trair e coçar é só começar, também adaptada para o cinema e para a televisão.

A comédia do paulista Marcos Caruso estreou em 1986, no Rio de Janeiro. Após mais de 30 anos, continua divertindo plateias em todo o país, tendo superado, ao longo desse período, mais de nove mil apresentações, com aproximadamente seis milhões de espectadores. A peça já obteve, inclusive, recorde de bilheteira: quatro registros no Guinness Book como a montagem brasileira de mais longa temporada. 

No panorama nordestino, em termos de popularidade, sobressaem as montagens de A Bofetada, espetáculo da Companhia Baiana de Patifaria, de Salvador, e Cinderela: a história que sua mãe não contou, da Trupe do Barulho, do Recife. Com direção do soteropolitano Fernando Guerreiro, A Bofetada estreou em 1988, na pequena sala do coro do Teatro Castro Alves, e também segue em cartaz até hoje. Em 30 anos, soma mais de 500 mil espectadores, em mais de 1,7 mil apresentações, excursionando por cerca de 50 diferentes cidades do Brasil.

Cinderela: a história que sua mãe não contou, produção capitaneada pelo ator recifense Jeison Wallace, responsável por firmar a Trupe do Barulho na cena pernambucana e conduzir o coletivo dos palcos improvisados nas casas noturnas para os teatros, é apresentado pela primeira vez em 1991, no Teatro Valdemar de Oliveira, na capital pernambucana. Atravessando toda aquela década em cartaz, a peça excursiona por várias cidades, somando mais de mil apresentações, com um público estimado em mais de 400 mil espectadores.

No Ceará, a maior expressão de bilheteria da cena local também se deve a uma comédia. Estreia de 1998 da Companhia Cearense de Molecagem, capitaneada pelo ator e diretor fortalezense Carri Costa, Tita & Nic se mantém em cartaz com temporadas periódicas. Sátira ao longa-metragem Titanic, primeiro filme a arrecadar mais de US$ 1 bilhão mundialmente – tendo sido lançado em 1997 pelo cineasta canadense James Cameron -, o espetáculo segue como um dos trunfos no repertório do grupo.

Tita & Nic contabiliza, ao longo desses 23 anos, um público superior a um milhão de espectadores, em mais de 1,7 mil apresentações, tendo circulado por diferentes estados do Brasil. O espetáculo, em suas primeiras temporadas, com plateias sempre lotadas, filas nas portas dos teatros e cambistas driblando as bilheterias, questionava – e, a seu modo, derrubava de vez – aquela tese de que o teatro, particularmente aquele desenvolvido por artistas do Ceará, não tem grande inserção de público. 

O music-hall na Inglaterra, o Vaudeville, o café-concerto e o cabaret na França, a revista e a burleta aqui no Brasil, todos esses gêneros apontam para o desenvolvimento e a organização de uma gramática massiva no campo das artes cênicas, afirmando o circuito dos espetáculos como alternativa de diversão para segmentos mais numerosos. Eles dividem esse espaço com livros, jornais e revistas de grandes tiragens, e ainda com as indústrias fonográfica e cinematográfica.

No rol de teatros possíveis e necessários, há que se botar reparo, portanto, no teatro massivo, que tem as suas próprias lógicas de criação e difusão. Como pensar, por exemplo, no teatro dos Estados Unidos, sem que sejam consideradas as práticas e as poéticas desenvolvidas, ao longo de décadas, pelos artistas dedicados aos famosos musicais da Broadway? Impossível. Ali, desenvolveu-se um tipo de teatro que funciona como indústria e movimenta cifras bilionárias em todo o mundo. 

Paulo Gustavo é um artista desse universo de questões. Sem nenhum demérito, pelo contrário, ele projetou e reposicionou, de forma absolutamente bem-sucedida, o teatro brasileiro no panorama do entretenimento. O Paulo Gustavo da televisão e do cinema é, por excelência, o Paulo Gustavo do teatro e é muito importante não perder isso de vista. A performance de Paulo Gustavo tinha uma matriz muito teatral, particularmente visível na opção pelo recurso do travestismo e pelo tom revisteiro de muitos de seus tipos.

Paulo Gustavo tinha uma versatilidade e uma capacidade de improviso absurdas. Ele conseguia tanto se camuflar, como se sobrepor, aos mais diversos personagens, e fazia isso com uma velocidade e uma precisão que levava o público quase que ao deslumbre proporcionado por um número de mágica. Sozinho ou em grandes produções, Paulo Gustavo tinha uma presença cênica muito poderosa. Ele era muitos e, talvez por isso, se comunicasse tão bem com tantos. Quanta falta ele vai fazer!

Magela Lima é pesquisador e crítico de teatro. Está no Instagram.

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.