Bemdito

Suzane Von Richtofen está fazendo faculdade e nem você, nem ninguém tem nada a ver com isso

A urgência de deixar de lado a espetacularização contínua do crime e da violência
POR Geórgia Oliveira

A mentalidade punitiva é uma característica muito interessante da nossa sociedade. Como explorou o Prof. Alex Mourão na sua última coluna, estamos sempre procurando alguém para punir, pois é no castigo que encontramos, como sociedade, a forma de lidar com nossos problemas. Na semana passada, discutimos sobre como o encarceramento é uma poderosa ferramenta de castigo social que merece ser repensada em seus pressupostos, mas a mentalidade punitiva não se encontra apenas no espaço físico da prisão: ela está na forma como lidamos continuamente com a violência.

Desde a metade do mês de setembro, acompanho notícias sobre dois assuntos interconectados: o lançamento dos filmes sobre as diferentes versões para o assassinato de Manfred e Marísia Richtofen e a autorização judicial para que Suzane Von Richtofen, atualmente em regime semiaberto, começasse a cursar uma graduação. É interessante perceber que mesmo após 19 anos do crime, ocorrido em 2002, o interesse público sobre o caso permanece. Parte dessa relevância se dá no contexto de produções de entretenimento sobre crimes reais (já discutidas e problematizadas aqui e aqui, mas outra parte reside na perspectiva um tanto quanto problemática de noticiar constantemente o paradeiro de pessoas condenadas por crimes de grande repercussão.

Que montar um plano para, com auxílio de outras duas pessoas, matar friamente os pais é um crime cruel, isso ninguém questiona. Mas qual a necessidade de seguir Suzane para filmá-la entrando na faculdade em seu primeiro dia de aula, como fez a equipe de reportagem do G1 no dia 29/09? Estabelecer um status de celebridade a uma pessoa que já foi condenada pelo crime que cometeu e persegui-la como fazem os paparazzis demonstra a dubiedade e as contradições de uma sociedade punitiva: ao mesmo tempo que evoca o castigo, seleciona quem quer esquecer na prisão e quem quer acompanhar, para além do interesse no caso.

Não são raras as reportagens noticiando progressão de regime, liberdade provisória ou mesmo saídas autorizadas pela justiça de condenados e condenadas por crimes de grande repercussão, escritas sem a intenção de esclarecer essas decisões jurídicas como decorrentes de direitos dos presos, mas apenas de continuar repercutindo casos que já tiveram uma resolução criminal. Nesse sentido, revolve-se o solo já instável no qual permanecem caminhando as pessoas afetadas pela repercussão desses casos: notícias recentes sobre problemas pessoais enfrentados o irmão de Suzane, Andreas, e sobre as disputas em torno da guarda e do poder familiar da filha de Elize e Marcos Matsunaga, nos lembram que mais que temas de séries e filmes e manchetes de portais de notícias, existem pessoas para as quais o true crime não é gênero fictício, é marca permanente na própria vida.

Na ânsia de noticiar e atualizar cada passo do cumprimento da pena de pouco mais de 39 anos recebida por Suzane em seu julgamento, bem como de outros casos famosos, esquecemos a discussão sobre o cenário real, a bigger picture, que é muito mais amplo do que só o caso Richtofen: a estigmatização derivada da necessidade social de consumir violência e o pouco ou nenhum amparo às vítimas e pessoas afetadas pela mesma violência fazem o sistema punitivo girar a todo vapor. Essas questões vão reverberar na base do sistema, com a repulsa a mecanismos desencarceradores, direitos essenciais dos presos que passam a ser vistos a partir da lente da impunidade.

Há uma infinidade de temas problemáticos no campo da violência para serem discutidos, muitos casos de real impunidade e negligência estatal para serem apurados e destacados, para receberem atenção social. Não precisamos de mais páginas escritas sobre a rotina de Suzane von Richtofen, seu caso já foi julgado, sua pena executada e sua vida e seus crimes observados à exaustão. Precisamos de mais gente dedicada a apurar o que aconteceu com os meninos desaparecidos em Belford Roxo e com tantas pessoas a quem o Estado não considera nem mesmo como vítimas e perdas passíveis de luto.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.