Bemdito

O delírio da liberdade para enganar

Alteração no Marco Civil da Internet é reação à tentativa de estabelecer ambiente virtual compatível com os valores da democracia
POR Desirée Cavalcante
Foto: Reprodução/Twitter

Na véspera do 7 de setembro mais tumultuado das últimas décadas, foi publicada, em edição extra do Diário Oficial da União, a Medida Provisória nº 1.068 de 2021, que altera o Marco Civil da Internet e inclui regras de moderação de conteúdos em redes sociais. 

Previstas na Constituição, as medidas provisórias podem ser editadas pelo presidente da República, em caso de relevância e urgência, e devem ser submetidas imediatamente ao Congresso Nacional, a quem cabe decidir sobre a conversão em lei. No caso da norma recém-editada, a ausência do fundamento de urgência é o primeiro problema a ser considerado. 

Na realidade, a medida representa uma indisfarçável tentativa de contornar ou, no mínimo, tumultuar a construção de consensos sobre os limites democráticos de condutas no espaço digital. Há meses, o governo já alardeava a intenção de editar uma norma que o permitisse ter mais controle sobre a remoção e sinalização de conteúdos nas plataformas. No último 5 de maio, por exemplo, o presidente, ao se referir ao gabinete do ódio – centro da propagação de notícias falsas no país -, ressoando versículos bíblicos, defendeu que aquele seria o local onde “nasceria a verdade”.

As versões dos fatos fabricadas pelo presidente e pelos seus apoiadores, sob o inadequado uso do termo liberdade, têm sido reiteradamente caracterizadas como mentira, engano e abuso. Assim, além do bloqueio e da sinalização de conteúdos publicados por contas ligadas ao governo federal, recentemente, por decisão da Justiça Eleitoral, foi determinado que as plataformas digitais YouTube, Twitch.TV, Twitter, Instagram e Facebook suspendessem o repasse de valores decorrentes de monetização às pessoas e páginas investigadas por propagar desinformação, várias delas ligadas à base de defesa do governo. 

A medida provisória é, pois, uma reação à tentativa de estabelecer um ambiente virtual compatível com os valores da democracia e com a segurança da sociedade e das instituições. Inclusive, não parece acidental que seja publicada justamente na véspera do dia de manifestações de atos contrários às instituições democráticas. 

Outro ponto que chama atenção é o fato de a medida se voltar para redes sociais definidas a partir de um critério numérico, estabelecido pelo “mínimo de dez milhões de usuários registrados no País”, deixando de fora repositórios menores. Assim, para as grandes plataformas, a norma prevê a vedação da adoção de critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdos que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa e silencia sobre propagação de notícias falsas e desinformação. 

Na prática, dá-se margem a entender que as maiores plataformas digitais poderiam ser punidas por retirarem ou advertirem publicações com, por exemplo, conteúdos de teor antidemocrático, atentatório à saúde pública ou falso. Essas publicações dependeriam de decisão judicial para serem removidas, bloqueadas ou sinalizadas, o que representaria o retardo da possibilidade de controle de divulgação de conteúdos de alto grau de repercussão pública, inclusive em contextos como eleições, crises sanitárias e mobilizações sociais violentas.

A discussão sobre as hipóteses, o tempo e a forma de moderação de conteúdos pelas plataformas é longa e possui inúmeros pontos de sensibilidade. Em anos recentes, tem crescido a pressão pela adoção de padrões de transparência e pela ação contra desinformação, crimes e abusos. Desse modo, a burocratização dos mecanismos de moderação dos conteúdos inadequados, no sentido da norma editada, vai de encontro aos precedentes que têm sido estabelecidos internacionalmente, uma vez que é compreendido que a remoção de conteúdos com teor de incitação de ódio, violência ou desinformação não compromete o debate público; ao contrário, viabiliza a sua construção. 

Ao tentar defender as condutas ilegítimas de seus apoiadores, o governo federal compromete um sistema que tem sido duramente construído para se compatibilizar com a existência pacífica de uma sociedade plural e democrática. 

O sentido da liberdade não alberga condutas discriminatórias, falsas, violentas ou antidemocráticas. Em nenhum sentido, a liberdade pode ser despida da responsabilidade ou se congregar com autoritarismo, engano e arbitrariedade. Por isso, sinalizar qualquer forma de tolerância a essas condutas é ilegítimo, inconstitucional e irresponsável.

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.