Bemdito

Galeano e um parágrafo de infinito

Escrever para morrer em paz
POR Felipe Pinheiro

Tem um parágrafo de Eduardo Galeano, em um conto intitulado “A Festa”, que, suponho de caso pensado e sem afobação, se ele tivesse morrido logo após tê-lo deitado na página, teria morrido feliz. Ali, depois do ponto final.

Não se trataria de ativamente desejar morrer, Deus o livre, mas de estar a postos para findar em paz naquele instante, fosse o caso. Digo isso porque o escrito tem um divino entendimento daquelas importâncias e grandezas que só se revelam a nós, reza a lenda, aos calcanhares da morte. Tem a beatitude de capturar o infinito numa brevidade. A dádiva de se enfiar inteiro – corpo, espírito e trajetória – em um minúsculo grão de verbo. Diz o parágrafo:

“Enquanto acontecia, essa alegria estava já sendo recordada pela memória e sonhada pelo sonho. Ela não terminaria nunca, e nós tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba”.

Na calada desse trechinho eu especulo o porquê de tanta gente escrever em vida, mas tão pouca gente morrer escritora: é porque há de se aceitar o fado de que cada palavra riscada é um passo em direção ao próprio fim. Há de se ter a prontidão pra mergulhar de ponta, cegamente, no manancial da lembrança, do trauma e do sonho, ainda que um cálculo infeliz no salto e as profundidades elusivas do ser te levem a esmigalhar o crânio no assoalho do íntimo.

Estar animado e disposto a terminar junto com seu dizer, de também se concluir, de se matar com um ponto final. E ir em paz.