Bemdito

Quando junho chegar, eu me espalharei no vento

A mágica beleza do mês que mais faz bem ao Nordeste
POR Felipe Pinheiro

Junho chega ao nordeste trazido por um vento, essa é minha crença. Não um vento qualquer, mas um vento de condão, com personalidade e expediente. Um vento animista.

Assim como o vento Aracati salta do mar e entra na boca da noite, refrescando o Vale do Jaguaribe; assim como o vento Marajó engolfa brisas na baía de Guajará; assim como o vento Minuano corta com lâmina polar os pampas gaúchos; há um vento designado a trazer junho ao nordeste. E o vento de junho não se recicla em outros meses, fique salientado. Entre julho e maio, vai hibernar e guarda-se casto Deus sabe onde, para regressar pontual a cada sexto mês do ano de Nosso Senhor.

Os climatologistas, mestres da atmosfera, provavelmente mangariam de mim por render tamanha cerimônia a uma corrente de ar sazonal. Já os filhos dos Andes, Himalaia e aldeias ameríndias, magos do ar, endossariam com boa fé minha superstição de fazer crachá para um vento. Nessas terras se parem e batizam ventos aos feixes. São aos magos das aldeias e cordilheiras que peço apadrinhamento nesta empreitada.

O vento de junho tem cauda, igual cometa, e quando passa rasante no sertão vai derramando da rabeta uma chuva de enfeites. Era sob o vento junino que a serra onde vivi a meninice irradiava os ares do fantástico: toda pipocada de cores, extravasada em formas e estampas, trançada de bandeirolas. O céu rabiscado por corisco de pólvora e aceso de balão, as ruas lavadas e purificadas em chama de fogueira. Faltava prato para tantos sabores. 

Graças ao condão do vento, os dias se enchiam de personalidade, as manhãs raiavam com um gênio e as noites com uma veneta, e nas madrugadas pairava uma neblina de passado, um orvalho de tradição, como se todos os junhos se fundissem num só, o do presente. 

Não por acaso, durante os dois anos de cárcere pandêmico, foi nos junhos que o golpe me machucou mais forte, pois apagou-se a cara dos dias, escondeu-se a feição que nossa história afigura neles. Fomos asilados num quartel de dias forasteiros, submissos à vontade autoritária de horas ocas, mortas. Manhãs sem gênio e noites sem veneta. Nessa modorra, fui obrigado a hibernar entre quatro paredes, assistindo ao vento junino se mutilar no gradil da minha janela, triste de abandono.

Aos poucos vamos nos alforriando do punho do algoz pandêmico. E agora, podendo existir da porta pra fora, meu coração se entrega ao expediente do vento de junho. Na entrada do mês ele chega ralo, manso, varrendo as sobras abafadas de maio. No correr da primeira semana vai se soltando, alteando, estirando a cauda. Quando avista se aproximar o solstício, desgarra pleno, traquino e vivaz, nos enchendo o peito, descamando a cauda em balões e bandeirolas, chispando os lumes santos oferendados a Antônio, João e Pedro. 

Ao vento de junho deste ano de Nosso Senhor eu rogo que, nas madrugadas de cor e brasa, ele uive extraordinariamente poderoso, invocando os acordes, prosas, chiados de chinelo, as neblinas e orvalhos dos junhos passados, que dê gênio e veneta aos dois junhos desfigurados pelo algoz pandêmico, fazendo de todos os junhos um junho só, o junho de sempre. Eu sei que assim será. O vento de junho não falha.