Bemdito

“O meu IMC é a medida da minha vergonha”

A quem interessa que estejamos sempre insatisfeitas com nossos corpos e que evitemos os espelhos?
POR Paula Brandão
Foto: Eva Blue

A frase é do livro Fome: uma autobiografia do meu corpo, de Roxane Gay, feminista negra, estadunidense. Ocupando a seção nomeada Missivas, no Bemdito, tomo a liberdade de escrever uma carta para a ilustre autora. 

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Prezada Roxane,

Gostaria de agradecê-la imensamente por ter escrito o livro Fome. Há um ano, venho levando-o para a sala da graduação e tem sido o ápice das nossas sensibilidades ao nos aliarmos, segurando a sua mão, na (re)descoberta dos nossos corpos femininos.

Do mundo virtual a que fomos arrastadas nas aulas, eu ouso convidá-las para uma outra dimensão e criar um universo imaginário, assistidas pelas nossas ancestrais. Sugiro um exercício de deslocamento mental para um terreno bem longe daqui, escuro, cheio de árvores frondosas, onde todas possamos sentar em círculo, formando uma grande roda, com uma fogueira ao meio. Cada uma no chão, com sua própria manta, ouvindo-a falar. Enquanto algumas mantêm olhares fixos na chama que serpenteia no ar, outras, ainda desconfiadas, ficam à espreita, olhando o terreno para saber se realmente estamos seguras para falar o que pensamos.

Na cadência de sua voz doce e rouca, simultaneamente, você nos apresenta a história do seu corpo e revela uma narrativa de fracasso, e não de sucesso, como estamos habituadas a escutar. Seu corpo gordo – que você revela ter atingido o “número vergonhoso de 262 quilos, nos 1,90m de altura” – é a sua prisão.

Nós a olhamos e te achamos tão bela, uma mulher gigante, e nos sentimos seguras perto de você. Ao se desnudar em relatos, você confessa um corpo gordo alvo de todo tipo de suposições, que passa pelo crivo do olhar do outro sempre precisando justificar-se por seu tamanho, pois se tem um corpo que é alvo de todos os comentários e que as pessoas acham que podem opinar, esse corpo é o das mulheres, e mais ainda, das gordas. 

Na visita que você fez ao cirurgião bariátrico, eles recomendaram uma cirurgia. Os médicos, como detentores do saber sobre os corpos, disseram-lhe que só era possível um tipo de corpo: o magro, associado ao que é saudável e recomendado para você. Apresentaram-lhe o IMC, que é uma medida única para todos os corpos, uma designação médica arbitrária, que a acusa de obesa, e cuja pena de morte é proferida ao acrescentar o substantivo mórbido, que fez seu pai estremecer ao seu lado.

Uma aluna interrompe, enquanto discutimos a sua obra, e fala que tinha assistido a um reality show em que as pessoas gordas, são acusadas de indisciplinadas, restritas a dietas de baixíssimas calorias, e pergunta: será que isso é saudável? Esses programas mostram corpos que fracassaram em seu projeto de magreza, mas há uma relação direta entre ser magra e ter saúde? 

Uma garota diz que na pandemia perdeu 40 quilos devido à associação direta de gordura e mortalidade da Covid-19. Ela teve uma crise de depressão tão grande, que parou de comer, começou a treinar e assim conseguiu emagrecer. Outra diz que foi com uma amiga ao nutrólogo para pedir o atestado de obesidade 3, com fins de tomar a vacina contra o coronavírus, e o médico fez uma intervenção inesperada, dizendo que elas tinham era que emagrecer, perder peso e viver saudáveis. As meninas se sentiram tão agredidas pela abordagem, que o acusam de gordofobia. Os corpos gordos estão à disposição de todos para sugestões e intervenções de como torná-los magros?

Você retoma a palavra e diz que, na verdade, esses discursos falam mais dos padrões sociais em que estamos inseridos do que de uma vida saudável. Enfatiza que as pessoas não valem pelo seu tamanho ou pela sua aparência. Nós todas concordamos com você que as mulheres precisam se sentir confortáveis em seus corpos, e não fadadas a mudar cada dobra a mais, ruga, ou o formato dos rostos. Ratificamos que não conhecemos mulheres que estejam satisfeitas plenamente com seus corpos, independentemente de quanto pesam. A quem interessa que estejamos sempre insatisfeitas com nossos corpos e que evitemos os espelhos? E você retoma:

“Meu corpo é terrivelmente indisciplinado e, no entanto, nego a mim mesma quase tudo o que desejo. Eu me nego a entrar em alguns lugares que julgo inapropriados para um corpo como o meu – a maioria dos espaços habitados por outras pessoas, transporte público, qualquer lugar que eu possa ser vista ou atrapalhar. Eu me nego cores vivas nas roupas que escolho para o dia a dia, mantendo o uniforme jeans e as camisetas escuras. A punição é praticamente a única coisa que me permito. (…) Isso é o que ensinam às garotas, que devemos ser magras e pequenas. Não devemos ocupar espaço. Não devemos ser vistas ou ouvidas.” 

Ficamos muito emocionadas com o seu depoimento e, infelizmente, foi um gatilho para tão jovens alunas se identificarem com o que você disse hoje. Essa nova geração que circula livremente pelo virtual percebe que há uma discussão sobre autoaceitação dos corpos. Isso não é besteira: é uma forma de acolher mulheres como você, cara Roxane, para que não tenha que pedir desculpas por existir! Há palavras que curam, pessoas que salvam e amainam corações. Apagamos a fogueira e te abraçamos profundamente agradecidas.

Até o próximo encontro!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).