Bemdito

Quero ser velha

Ao envelhecer, descobrimos que o amor e a vida andam de mãos dadas com a bagunça e o caos
POR Carolina Mousquer Lima
Gustav Klimt, detalhe

Eu observo as pessoas e crio muitas listas mentais esquisitas. Como quero viver bastante, uma delas é sobre o que devo fazer para não me tornar uma pessoa mais ranzinza do que já sou. 

Concordo com os velhinhos quando dizem que essa história de “melhor idade” é conversa de marqueteiro. Não tem nada de “melhor” em conviver com um corpo que dá sinais de falência. Prefiro a versão freudiana, sempre precisa e realista. 

Já bem velho e sofrendo com um câncer no maxilar, ele diz que tornar a vida mais desagradável à medida em que envelhecemos é uma espécie de gentileza dos deuses – a ideia de morrer vai se tornando menos intolerável e, por vezes, pode até ser um alívio. Essa entrevista de Freud faz parte de outra lista mental: os textos que posso reler quando estiver precisando de um sopro de beleza ou de inteligência na vida.  

Quando começo a me queixar das inevitáveis falências corporais, faço questão de lembrar que só não envelhece quem morre cedo. E eu “não quero furar a fila”, como dizem na minha família quando se fala em morte. 

Fazer piada com a própria morte é sempre um jeito de vencê-la. Não me interessa a queixa excessiva, tampouco a alienação da “melhor idade”. O tempo passa e não liga para o que a gente pensa ou quer. Olha aí o primeiro item da lista! Permitir-se a queixa, mas não se demorar demais nela. Reconhecer as coisas como são, quando não se pode resolver, e seguir adiante. E se a gente pode resolver, revoltar-se e agir, até que mudem. 

Dando uma chance a própria vida se encarrega de nos tirar desse marasmo quentinho da queixa inútil. O café que acabou e nos faz ir até a padaria da esquina faz parte dos  pequenos desaforos do cotidiano. Nos ajudam a levantar do sofá, movimentar de lá pra cá, encontrar pessoas. A gente sempre pode dar um jeito de fazer o acaso, na sua insistência cotidiana, trabalhar pela vida. 

Mas se a vida se resumir a isso – resolver coisas apenas para si -, hum, sei não, hein. Melhor anotar um segundo item na lista:  não perder a conexão com as urgências do mundo, a não ser por motivo de demência atestada por 3 especialistas com firma reconhecida. E fazer algo. Para melhorar a vida de alguém, de fato.  

Pensando bem é preciso acrescentar uma observação no ponto 2. Não serve melhorar a vida de alguém de acordo com os nossos princípios. Isso deixamos para os religiosos fanáticos. Nada afasta mais as pessoas (interessantes) do que a arrogância de achar que só nosso jeito de levar a vida é o certo. 

Também observo os velhos de quem eu gosto. E faço a lista ao contrário. Como essa pessoa viveu, o que fez dela essa pessoa interessante? A resposta que volta e meia encontro, é simples: interessar-se pelo mundo, pelas suas novidades, incoerências, dilemas, belezas e feiuras. Pela vida aqui e agora. Interessar-se, genuinamente, pelas pessoas. E não precisa ser em tempo integral. Descansar dos outros, e deixar que os outros descansem de nós, também parece ser importante.

E assim eu vou envelhecendo. Fazendo listas esquisitas e inacabadas que abrem parênteses intermináveis. No fundo, sei que o amor e a vida andam de mãos dadas com a bagunça e o caos, não cabem em itens organizados. E, assim como Arnaldo Antunes, eu prefiro “estar no meio do ciclone, para poder aproveitar. E quando eu esquecer meu próprio nome, que me chamem de velho gagá”. 

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.