Bemdito

Você tem medo de quê?

Sobre os medos que vêm de dentro e os segredos para desencantar pesadelos
POR Olivia B. de Avelar

Pequenos caixões de madeira se enfileiram sob vigília: as memórias mais antigas da nossa noite interna nos espreitam pelas frestas. Os cenários, feito teatro de sombras chinês, crescem, se contorcem e escapam das nossas mãos, feito fumaça, deixando como rastro de sua presença incômoda somente o suor pegajoso e os espasmos que não controlamos. Apreensão, arrepios, secura na boca, desespero: os sinais aparecem e desaparecem, atacam e se escondem, se vestem com diferentes túnicas, nos encaram com muitos rostos, mas por trás de todas as máscaras sempre está aquilo que acorda, em nós, os mesmos medos. Os medos eternos – porque congelam o tempo, porque fazem os ponteiros do relógio andarem para trás e se deterem nos piores momentos que já experimentamos. Os medos erráticos – nômades e vagabundos que nos agarram, subitamente, no virar de uma esquina, no crepitar dos galhos e nos gritos acordados pelos clichês do cinema.

O que nos assusta não mora lá fora, não está na tela: nossos piores sustos vêm sempre de dentro. Essa casa enorme e penumbrosa onde, desde sempre e para sempre, viveremos sozinhos e cercados, unicamente, de reminiscências. Nos filmes, as imagens são somente as iscas, as visitas que, com mãos angulosas e pálidas, batem à nossa porta e perguntam: há algo aí dentro, tão escondido e tão assustador, tão dolorido que nunca termina de arder, tão entranhado no tecido epitelial que é impossível saber de onde veio e onde está? Há algo aí dentro que, de tanto ser reprimido, esmagado e sufocado já até se esqueceu de sua forma original e que, por isso, poderei brincar de moldar e transformar em muitas e muito destorcidas formas – tantas quanto eu quiser? Há algo aí dentro – e a resposta é sempre sim – que servirá como estofo para o espantalho que irei costurar e com o qual eu vou te assustar e assombrar? É a leve alfinetada na espinha que nos avisa que já as deixamos entrar – e elas, sempre, se sentirão em casa. 

“Quando eu era criança, eu tinha medo quando minha mãe saía e me deixava com a minha tia. Eu tinha medo que ela nunca mais voltasse para casa.” “Me assustava a casa do vizinho: ela era escura e úmida. Era uma casa de tijolos e sem reboco.” “Eu tinha medo do balanço da escola arrebentar enquanto eu brincava nele.” “Me apavorava acordar pra ir ao banheiro no meio da noite.” Foram os relatos de nossos medos infantis que nos levaram a explorar, durante a décima sétima semana do clube do filme, tudo aquilo que nos amedronta. E, como tantas vezes fizemos quando éramos meninas, pedimos para que uma amiga nos acompanhasse, pedimos para que ela segurasse a nossa mão e, Ofélia foi a primeira que aceitou com um sorriso, apesar de também estar tão apavorada quanto nós estávamos. Em sua companhia, entramos em um labirinto onde vivia um fauno. Ofélia era uma menina encantada e, ao lado dela, eu não sentia mais tanto medo do escuro. Foi ela quem disse, com os olhos, que muitas vezes as coisas mais apavorantes acontecem às claras – em plena luz do dia, diante dos olhos de todo mundo – e que, por isso, lugares escuros podem se transformar em refúgios seguros e esconderijos feitos de breu onde imaginamos um outro mundo – um mundo mágico onde encaramos o medo mesmo sentindo muita dor. 

Quando ouvimos o chamado, o relógio marcava Sete minutos depois da meia-noite. Para o segundo filme, deixamos um bilhete para o novo amigo Conor, onde se lia: você tem medo de monstros? (perguntar as coisas de maneira tão sincera e direta dá muito medo, por isso, ilustramos o bilhete com alguns desenhos). Conor era um menino sério, um pouco triste. Para ele, ser forte era não demonstrar medo. “Só os fracos sentem medo!”, ele dizia. Nós não acreditamos nele… ao reparar seus olhos fundos e seus lábios trêmulos, pensei sobre os medos que não admitimos ter. Sobre os medos que não confessamos – nem mesmo sob a tortura de um monstro. Não confessamos que por nos sabermos culpados, procuramos por alguém que nos faça ser punidos. Não confessamos que o pavor de nos sentirmos comuns e sem talentos especiais nos leva a perseguir e humilhar qualquer pessoa que se sinta confortável e realizada ao fazer o que faz. Não confessamos que se ficamos com muita fome, começamos, lentamente, a roer nossos próprios ossos e a mastigar as cartilagens do nosso próprio coração. 

Para o último filme, encontramos um amigo adulto, como nós somos, mas que carrega dentro dele – viva e brilhante – a criança que ele um dia foi. Danny, um homem que cresceu com medo, nos ensinou a passear por dentro dos nossos sonhos e a encontrar neles a realidade e a verdade sobre o que nos apavora. Danny embala e conforta as pessoas, antes que elas durmam para sempre. Nosso amigo, o Doutor Sono, nos mostrou um hotel com muitos quartos, corredores compridos, salões de jogos e de baile: um hotel inteiro para acomodar o que negligenciamos e o que omitimos, tudo que escondemos, tudo aquilo que não ousamos sussurrar nem para nós mesmos, sozinhos e no escuro. É seu pai bêbado quem carrega o machado (é dele o rosto que você vê sobre a face do personagem na cena do filme). É seu medo de saber que é igual a ele que te leva pela mão, até as garrafas de bebida. É o medo que você sentia do seu pai – quando ele batia na sua mãe – que te ferve as vísceras e te faz bater em mulher. É seu medo de envelhecer e, depois, morrer que te faz desejoso e comensal da juventude alheia. É seu medo que te joga no escuro e que não deixa você saber o que é a vida sem essa sombra e quem é você sem esse assombro. 

O ranger de uma porta. Uma figura disforme nas sombras do quarto. Os galhos arranhando um céu pesado como o chumbo de que são feitos os remorsos e as culpas: apenas senhas. Truques de mágica. Invenções dos roteiristas e escolhas de direção. O verdadeiro calabouço assombrado está dentro de nós e, como almas penando em nosso próprio palco/labirinto/prisão, primeiro escondemos e, depois, procuramos – sobressaltados e ofegantes – as chaves que nos trancam e nos encerram. Tentar escapar do medo deixa a escuridão cada vez mais forte. É quando acendemos a luz, é quando olhamos para tudo que nos apavora com tanta força e vontade, transformando nossos olhos em dois faróis de coragem e autoperdão – que as sombras se envergonham, perdem a força sobre nós, e, quando começam a subir os créditos, elas já se dissiparam e desaparecem. Me lembrei de O Iluminado… linda e apavorante obra de 1980 – um filme que me assusta muito, mas que, mesmo assim, senti vontade de assistir novamente. Porém, não sozinha, mas de mãos dadas com algum dos meus mais queridos e corajosos amigos – sejam eles crianças, adultos ou personagens. Ou com algum dos antigos amores que escondi, ou sentada ao lado de alguma reprimida vontade que, por medo, nunca admiti desejar. Desejo, vergonha, humilhação, inveja, frustração, saudade: quando olhamos para cada um deles – olhos nos olhos – é quando o assustador se transforma em simples realidade, quando os monstros se transformam em poeira e quando podemos dormir, sem pesadelos, para sonharmos em vão e em paz.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.