Bemdito

De Toritama rumo às estrelas

"Estou me guardando para quando o carnaval chegar", um documentário sobre tempo, consumo e mão de obra, analisado por um Clube do Filme ocorrido em meio à pandemia
POR Olivia B. de Avelar
Foto: Reprodução

O que move cada indivíduo? O que nos faz seguir adiante, acordar todos os dias, cumprir nossas obrigações, engolir a comida e os desgostos, esperar pelas horas que não passam, driblar o tempo que não nos pertence, produzir o que não é para nosso consumo, ser a mão de obra de um mundo que nos escapa e que parece que nunca vai nos pertencer?

Em Toritama, uma pequena cidade no interior de Pernambuco, existe um polo de fábricas de jeans. O filme Estou me guardando para quando o carnaval chegar foi o primeiro que assistimos para o Clube do Filme, em abril de 2020. A antiga cidade rural deu lugar ao barulho das máquinas de costura e os antigos lavradores se tornaram pequenos proprietários de confecções. Homens e mulheres que dedicam mais de dez horas por dia de suas próprias vidas com o intuito de ganhar a vida. E que aguardam, ansiosamente, pelo carnaval – os únicos dias do ano quando retomam para si mesmos a posse de seu tempo vital. 

Gravidade foi o último filme do clube, assistido em novembro de 2020. Partindo de Toritama, a tela do cinema nos levou para as estrelas. Mas aonde quer que possamos chegar – através de nosso esforço, da nossa inteligência, do trabalho ou dos tropeços – sempre carregaremos conosco nossa perecível carcaça de gente e nosso frágil cérebro humano. Não importa a jornada: curta ou longa. Não importa o tempo: medido em carga horária trabalhada ou flutuante, frouxo, pelo vácuo infinito. A marca humana é sua finitude, nossa vontade infinita conflitando com nosso conhecimento limitado. 

Se não sabemos aonde estamos indo, Toritama nos empresta sua singela resposta: vamos ao mar. O mundo é grande e, sobre o espaço, nada se sabe ao certo. Há que se admirar a saga toritamense, que morre 361 dias do ano para viver quatro dias de carnaval. Os quatro dias de mar e festa que fazem esquecer e valer todos os outros dias de auto-anulação e cansaço. A vida é trágica, e Toritama olha nos olhos do abismo, enquanto muitos de nós procuramos nossas respostas nas estrelas. Não há nada além. A vida é agora.

E como estará Toritama, agora? Quando não há carnaval, guardam-se para quê? Talvez, esperem o próximo. Talvez, continuem mortos. Talvez, e só talvez, os mortos sejamos nós e Toritama siga costurando os fios do tempo – como as moiras gregas que tecem e decidem quem vive e quem morre. Que não tenhamos pena de Toritama, forjada no sol e no aço. Tenhamos pena de nós mesmos, seus tão semelhantes na morte em vida, que, muitas vezes, não esbaldamos a alma à prestação, nem mesmo por quatro dias, e não nos escrevemos odes e não nos coroamos a carne com água salgada e folia orgiástica e profana. Toritama vai bem. O espaço é irrelevante. Precisamos saber de nós.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.