Bemdito

O castigo

Um conto em duas partes
POR Rhaina Ellery

Quando chegar, vá até o meu quarto. 

Mesmo não querendo ir, eu obedecia. Às vezes, eu parava em frente à porta, o sol apontado na janela, e pensava em me rebelar, ao menos uma vez. Afinal, para que servia ter dezenove anos se não fosse para ignorar certas regras?  

Cheguei, eu falava tentando reconhecer minha própria voz. A pastilha extraforte sabor hortelã fazia meus olhos lagrimejarem. Minha mãe tirava o tapa-olho como quem arranca os óculos escuros dentro de um túnel. Seu rosto desperto sempre me assustava. 

Eu me aproximava tentando não esbarrar em nenhum objeto, o cômodo era quase um campo de batalha naval. Por vezes eu implodia uma bomba, voava alto e, antes que eu me levantasse, mamãe já estava de pé diante do saco ébrio que eu era. 

O teste do bafômetro foi inventado por ela depois da minha segunda farra. Filha minha não bebe. De agora em diante, não importa a hora, quero cheirar sua boca. Ela me farejava como um cão policial e a cada reincidência bacante a pena ficava mais alta.

Naquele domingo, decidi não voltar bêbada para casa. Cheguei sóbria, dois dias depois de ter dito que só iria ao cinema. Entrei no quarto escuro, aliviada em saber que o nariz de mamãe sentiria, no máximo, o calor do meu hálito dissimulado. 

Meu pai, com seu enorme bigode e barriga para cima, roncava alto. No dia em que vi leões marinhos pela primeira vez, em um programa pessimista sobre o futuro do planeta, imediatamente lembrei dele. Quando seu peito se esvaziava, o silêncio poderia ser sentido bem alto. Até que ele emergia à superfície do oceano e, tal qual um afogado, inflava desesperadamente o peito, preenchendo todo o ambiente com mais entulho. 

Foi a primeira vez que mamãe não gritou, bateu ou xingou. Ela segurava o terço na mão. Esperou terminar A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva para se virar em minha direção e me observar como um carcará que avalia a presa podre demais para comer. 

Mamãe não cheirou minha boca, mandou que eu me retirasse e o dia transcorreu sem que mais uma palavra fosse dita. Dava para ouvir as maçanetas, as torneiras, as panelas, os talheres. Cada móvel da casa pode conversar sem ser incomodado por nós. 

No final do dia, o céu alaranjado já dizendo adeus, mamãe apontou para a chave do carro e disse ao meu pai: leve ela até lá e volte pra casa. Papai vestiu uma camisa herdada, um sapato lustrado, não chamou meu nome pedindo que o seguisse mas, mesmo assim, entrei no carro, assustada feito criança que sente que vai vacinar.

Trafegamos por ruas irreconhecíveis, ao menos para mim. Tentei decorar pontos de referência: padaria, oficina, farmácia. Da próxima vez, faço feito Ariadne e levo um novelo de lã escondido na bolsa para encontrar o caminho de volta, pensei. 

Até que o carro parou em frente a uma pequena casa azul bic, desbotada pela pobreza. Somente você poderá decidir. Procure-nos!, a parede falava. Dentro de um triângulo, estavam as letras AA escritas de branco.

Rhaina Ellery

Advogada pública, especialista em escrita e criação e mãe de duas meninas.