Bemdito

Você tem medo de quê?

Para Lis, que enxerga no escuro, uma reflexão sobre medo e liberdade
POR Glória Diógenes
Cena do filme "Onde vivem os monstros"

A noite acendeu as estrelas porque tinha medo da própria escuridão

(M. Quintana)

Ao perguntarem seu nome, ela de pronto respondia: Maria Maluca. Cantava alto, num timbre de voz agudíssimo, enquanto limpava a casa. Era 1966, o auge da Jovem Guarda. A canção Chorão, primeiro sucesso de Paulo Diniz, era entoada todos os dias. Enquanto varria, Maria ensaiava, agarrada à vassoura, uns passos de iê-iê-iê – outro dia vinha pela rua quase morri de rir, pois um cara que passou por mim chorava fazendo assim. Na parte final da música, produzia estridentes ruídos, fazendo mímicas exageradas, caretas em performáticas onomatopeias – ran ran ran ran ran ran ran. Na pequenez dos oito anos, a menina mirrada, apelidada de “seca do quinze”, corria pela casa atemorizada.   

Maria foi percebendo o poder que exercia, sua verve filme-de-terror-sessão-da-tarde, e passou a sofisticar as marmotas. Era assim mesmo que se dizia sobre ela: oh, criatura cheia de marmota! Gíria sobre algo desengonçado, esquisito, que apenas atenuava os arroubos caricatos de Maria. Apostadora fiel do jogo do bicho, sabia calcular centenas e milhar. Um dia, de forma grave, anunciou que iria rezar para que na madrugada aparecesse no quarto da menina um homem montado num cavalo, com um número escrito na testa. Mirou os pequenos olhos, chispando, como se neles cravasse palavras em finos estiletes, e sentenciou – anote bem direitinho, vou ficar rica. Se você esquecer de assentar o número, ele voltará a te visitar todas as noites.

Na mesinha ao lado da cama, a Maluca dispunha o lápis e a folha em branco. Quando se aproximava o escuro, e a casa se cobria de silêncio, a menina apertava os olhos até não dar passagem para o além-mundo. Nunca viu o tal homem. Chegou até a escutar alguns galopes, risadas e o ran ran do Chorão a dobrar-se de rir da espera desesperada. Adormecia nas aulas, na mesa do almoço, nas brincadeiras da tarde. Belo dia, a pequena inventou um número. Enfeitou a aparição, deu voz ao fantasma – ela vai ganhar o primeiro prêmio. Maria fez rápidos cálculos e concluiu – é leão. Conseguiu uns bons trocados. Anos depois, soube-se que o apelido de Maria, que martelava os pesadelos da menina – maluca, maluca, maluca – havia sido atribuído devido ao seu gosto por um biscoito de mesmo nome. Nada demais, depois que o tempo passa. Hoje o escuro é outro, o maluco não é bolinho e os fantasmas não trazem pistas para os jogos de azar.

O medo é um ator que veste camadas do tempo. Metamorfoseia-se em espetáculos da história. Os terrores com a aproximação do ano 1000 traçaram narrativas de uma lenda romântica. Georges Duby conta que a passagem do milênio suscitou uma espécie de pânico coletivo, em que as pessoas morriam de medo e vendiam tudo que possuíam. O medo do além, o pavor do inferno, trouxe muitas doenças da alma e inundado sentimento de impotência de homens e mulheres em face de seus destinos. 

A cena do “medo do fim do mundo” retornou na passagem para o século XXI. Alguns alardeavam que assim que o relógio marcasse o ano 2000 (muito embora a entrada do século tenha acontecido apenas em 31 de dezembro desse ano), as cidades ficariam sem eletricidade, os meios de transporte deixariam de circular, massas famintas invadiriam as ruas em busca de alimentos. O mundo, nas aparências costumeiras, sobreviveu. Afora todas as profecias, as previsões de fim.  

No filme sobre Pablo Neruda, O carteiro e o poeta, há uma cena de sublime beleza. Na escuta de um poema de Neruda, o carteiro Mário fala que se sente como as ondas do mar, ou um barco balançando em volta dos versos. O escritor tenta dizer ao carteiro como ele havia, mesmo sem intenção, construído uma metáfora. Perplexo, por ter conseguido tal feito, o carteiro indaga ao poeta:

 – Quer dizer que o mundo inteiro é metáfora para outra coisa qualquer?

Mário viu tudo. Sim, o mundo inteiro é metáfora. O fim do mundo, também.

2020. Uma pandemia toma conta do planeta. Em 2021, já foram mortas mais de 3.5 milhões de pessoas acometidas pela Covid. O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise, diz Krenak. O mundo está em suspensão. Quem passeia pelas redes sociais consegue ver o medo agora, ainda mais exacerbado, do mundo acabar, o pavor da doença, o assombro da morte.  O receio de a vida nunca mais “voltar ao normal”. Não entendeu nada, inocente.

Uma miríade de metáforas aguarda decifração. A contaminação atravessou alguns abismos de classe, de etnia, de gênero, de ilhas de poder e privilégios. Quanto mais o mundo divide, separa, fecha fronteiras, mercantiliza os mais variados bens, privatiza terras indígenas demarcadas, intensifica políticas armamentistas, novas cepas de contaminação se manifestam – humanidade do mundo todo, uni-vos!  

O medo cruzou portas. Uma menininha chamada Lis, ao dormir fora de casa pela primeira vez sem os pais, na volta, indagada se ficou bem, respondeu:

Pai, fiquei com medo do Bolsonario (dito assim), que ele aparecesse no escuro do quarto e tu não tava lá pra me proteger.

Não apenas ela, a menina. Um tanto de gente dorme acossada pelo fantasma cujo cavalo é seu próprio furor de morte. Gozo cujo nome é o medo.

Sim, Maria Maluca, ele voltou. Em sua testa, uma mira apontando para a vida. Você sabia. Medo é arma que se atira em silêncio. Isso é apenas uma noite longa. Calma, Lis, dá pra virar o jogo. Um passo faz moverem-se mil fios, cada movimento cria mil laços, diz Goethe, no Fausto.

Para além de apertar os olhos, comprimir o peito, enrijecer os músculos, estreitar as janelas do coração, cai bem costurar laços. Inventar números, deixar os fantasmas sem jeito. Você pode respirar. Escapar das noites escuras. Inventariar senhas de colos, abraços, divãs, amizades que escutam, enamoramentos, solos de descompressão. Acertar o bicho. Remeter Bolsonario para o inferno que o sustenta.   

Maria, nunca te contei. Já estava perto dos nove anos. Em uma das últimas aparições, na testa do desconhecido, havia um nome. Não era um número, nem bicho. Era rascunho. Após tempos suspensos, decifrei a palavra escrita em letras tortas. A travessia do medo do fim de mundo, dos mundos de cada vida, não é coragem, Maluca, é liberdade.

Você avisou, os homens sempre voltam. Diante do risco, a escuta quente. Alta temperatura dos afetos. Não ligo, Maria, se você ri e me acha tão piegas quanto a menina que inventou um número. Mulher, acredite. Movem-se mil fios ao se poder dizer, tenho medo, temos medo. Eu te recebo, trêmula, tu me abraças, te solto feixe. Horda, tribo, trupe, bando, matilha, sanga. Uma, um, dois, em muitos. 

Cerzindo medo em liberdade.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).