Bemdito

O militar-político e a reforma da legislação eleitoral

Uma análise sobre a nova polêmica da vez, envolvendo militares, civis, política e segurança pública
POR Alex Mourão

Conforme conta Lira Neto, no distante ano de 1933, uma série de dez artigos foi publicada no jornal Gazeta do Rio e seu autor era um certo Coronel Y. Em seus textos, o autor atacava com força a participação dos militares na política. Não esqueçamos que desde 1922 o movimento tenentista sacudia a política nacional.

Voltando. Naquele ano, escreveu o Coronel Y: o militar-político é uma espécie de lobisomem, um homem de existência dupla e misteriosa, que mete medo. Fecha aspas. Em diversos outros textos o mesmo autor ataca esse “lobisomem”, traçando uma linha de cores fortes entre a caserna e a política. Lembrando, os textos foram publicados em 1933.

Logo, toda essa discussão sobre a participação de militares na política não é nem tão nova assim. Desde muito tempo já se discute sobre fardados na política. É importante, porém, reafirmar que não é novidade, porque ultimamente tem muita coisa que é apenas requentada. Se, no começo do século XX, o debate era sobre militares das Forças Armadas, hoje é mais sobre os militares das polícias, um pouquinho das Forças e dos policiais civis também.

Óbvio que não estou comparando os tenentistas do passado com os fardados metidos na política do presente. Não há como comparar as pessoas de hoje com aquelas de então.

E por falar em policiais, a nova polêmica é a quarentena que se quer impor via reforma da legislação eleitoral. A proposta é para que militares, policiais, juízes e promotores fiquem um tempo na geladeira entre a sua saída da instituição e a sua candidatura. O objetivo é evitar a politização de instituições de estado, criando um lapso temporal. A ideia é interessante, pois pode conter certos ânimos de justiceiros que às vezes podem ser vistos sob fardas e distintivos. Algumas vezes disfarçado e outras nem tanto.

Não se trata de proibir a esses profissionais o ingresso na política, mas sim refrear o efeito de suas atividades (ou do que vendem como atividade policial) em uma campanha.  E mais, pode ser uma barreira ao uso eleitoreiro do aparato de segurança pública do estado.

E parece que é mesmo necessário criar essa separação muito clara e saudável entre a atuação policial e as pirotecnias eleitoreiras com viaturas e armas. 

As urnas foram bem generosas com candidatos que se identificam como delegado, inspetor, soldado, cabo, sargento e tantas outras patentes, tanto que, na Câmara Federal, no pleito de 2018, o número de eleitos com alguma relação com segurança pública ou Forças militares foi expressivamente maior do que na eleição passada. Saltamos de 12 para 28 deputados que se apresentaram ou que têm algum vínculo com forças de segurança pública ou Forças Armadas.

Mas o sucesso não é só na Câmara Federal, de um total de mais de oito mil candidatos identificados como agentes de segurança, nas eleições municipais de 2020, cerca de 800 deles foram eleitos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral e apurados pela revista Piauí. Foram eleitos 50 prefeitos e mais de 800 vereadores que são cabos, sargentos, delegados, ou têm títulos do tipo.

Esses candidatos e candidatas tiveram sucesso nas urnas, em sua maioria, com um discurso conservador – e também com tons de lei e ordem que ainda têm forte repercussão social, mesmo não apresentando qualquer tipo de resultado prático, consistindo numa velha ladainha punitivista.

Mas essa ladainha, ao que parece, agrada a muitos eleitores. É a defesa de pautas de combate ao crime, algumas específicas em relação à corrupção, outras em relação às drogas, outras em relação a qualquer coisa, até o que não é crime. Ainda, travestido dessa verve maniqueísta do bem contra o mal, tais candidatos se colocam como heróis e salvadores abnegados que entregam as suas vidas à sociedade. Ou seja, um discurso já bem mofado de tão velho, além de deslocado da realidade da segurança pública.  

Já falamos aqui em outras oportunidades sobre a importância da atividade de segurança pública e a urgente necessidade de impor a esses trabalhadores treinamento e profissionalismo. Porém, parte da categoria ainda teima em se aferrar numa retórica distorcida que não beneficia a sociedade sob nenhum ângulo.

Os profissionais de segurança têm o direito de ver suas pautas defendidas na arena política? Sim. Mas não precisam da pirotecnia para as câmeras, como forma de validar candidaturas que muitas vezes, após tomar posse, como esperado, continuam vazias em forma e conteúdo até na pauta que o elegeu. Além de não precisar, não é salutar para a democracia o uso de operações midiáticas como forma de angariar votos, como uma cruzada de justiceiros.

Essas ações podem comprometer diretamente o próprio trabalho com fins diversos do objetivo real. No fim, acaba distante de qualquer conceito de segurança pública. Não é à toa que a bancada dos profissionais que se identificam com essa visão de mundo é chamada de “bancada da bala” e não de “bancada da segurança pública”. Parece que os termos deixam muito claro o que representam.

PS: O Coronel Y, autor dos textos legalistas de separação das atividades de militar e político, era um pseudônimo usado por Castelo Branco, isso mesmo, o que depois seria o primeiro dos generais ditadores do Brasil. Pois é… como diz o ditado, o Brasil não é para amadores. 

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.