Bemdito

Quem são os loucos?

Um ensaio sobre a sanidade em "Um estranho no ninho", "Bicho de sete cabeças" e "Nise - o coração da loucura"
POR Olivia B. de Avelar
Cena do filme "Nise - O Coração da Loucura"

Quem são os loucos? O que desejam e quem desejam? Com o que sonham? Como sentem o nascer do sol tocar os pelos de sua pele de manhã? De quem se lembram quando cai a chuva de verão e o vapor molhado e elétrico dos relâmpagos se misturam à humana sensação de que não vivemos a vida como gostaríamos? Como deveríamos? Por quem suspiram, quando levantam os olhos antes de dormir, e se sentem tão sozinhos enquanto assistem, calados, ao teatro das constelações e à vigília das estrelas do céu? 

Os loucos já viveram livres nas ruas e eram vistos como santos e profetas do incompreensível. Os loucos já velejaram nas naus sem pátria até aportarem em terras selvagens, levados para longe da sociedade “limpa e organizada”. Os loucos: quais caminhos trilhavam depois de depositados tão longe dos olhos que só viam a normalidade no espelho? De que água bebiam, de que vinho se embriagavam? Que religião inauguravam, arrancando as próprias vestes e rasgando a carne do peito? A insanidade humana: usada como pária e bode expiatório. Corpos loucos – vivos e mortos – usados como objeto de estudo da ciência, tratados como coisas onde a ética não chega. Furados e escrutinados em prol de projetos iluministas e da superioridade da razão. De que se alimentam os loucos? De qual pão tiram sua força vital e de qual credo se alimenta seu espírito?

Dominados ora pelo furor religioso, ora pelo descontrole das paixões – o louco é o selvagem, o corpo improdutivo que não serve docilmente ao trabalho e ao consumo? É a sujeira que infecta as ruas? O fedor que espanta os clientes e turistas? O bicho humano que não se deixa anestesiar e desobedece à organização social higienista? Onde moram os loucos, senão nos locais propriamente destinados ao descarte das nossas frustrações? Moram nos prostíbulos baratos e nos resorts de luxo? Nos shoppings lotados de pessoas descontroladas e ansiosas por compras? Nos bares infectados de tristeza e desilusão regadas ao álcool e à música desesperançosa? Na câmara escura e no senado podre?

Há todo tipo de loucura – medida pelo tanto de almas que passaram e ainda passam por sobre a terra. Na décima semana do clube do filme, nossas perguntas pariram perguntas e começamos a ficar sem respostas. As interrogações se rebelaram e se voltaram contra nós, esticadas e exclamadas. Quem não se sente um estranho no ninho? Um filme com cheiro de hospital. Um homem são que enlouquece ou um louco em potencial? Um bicho de sete cabeças: filme com cheiro de cabelo sujo, de mãos se revezando para coçar cada uma das frontes, em ato repetido de desconfiança e suspeita, os pensamentos marinando em uma bacia de vozes: e se eu me comportar? E se eu me encolher? E se eu me impuser? E se eu concordar? E se eu desobedecer? Cada vez mais perguntas gritando e, a cada filme, mais caladas as respostas. Foi quando todas as peças do quebra-cabeça começaram a correr pelo chão e a se esconderem nos vãos, descendo pelo ralo, escalando as paredes. Foi quando não sabíamos mais onde tudo havia começado. Foi quando soltamos a corda que uma mulher nos pegou pela mão. A candura do seu sorriso, a profundidade dos seus olhos e a força serena de suas mãos nos presentearam com pincéis de muitas formas e todas as peças e cabeças quebradas se derreteram e viraram tinta: mágica! Era Nise, nos mostrando o coração da loucura.

Um filme com cheiro de gente. Paradas, bem no centro de um círculo multicolorido, onde o que era vermelho se esfarelou em laranja, se alegrou em amarelo e se adoçou em rosa. Foi bem ali que, rodeadas pelas mandalas e pacificadas pelo branco da tela, de mãos dadas, não procuramos mais pela saída, pelo fim, pela conclusão. É no âmago da loucura que se transforma o caos em cosmos, o barulho em música e a dor em beleza. A ciranda humana: somos um círculo dentro de um círculo – sem um começo e sem um fim – onde não há respostas feitas de palavras, onde a única razão de ser é feita de emoção, do silêncio eloquente e do arrebatamento da forma e da arte. Ainda não sabemos quem são os loucos, mas, talvez, os loucos saibam muito bem quem eles são – e se perguntem: quem são os sãos? E tudo sendo, somente, uma questão de apropriada apresentação.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.