Bemdito

“E fora do trabalho, você está bem?”

O lugar do trabalho em nossas vidas fica mais evidente quando pensamos sobre a nossa autoimagem distorcida pelo problema do desemprego
POR Paulo Carvalho
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Somos induzidos, quando criança, a responder o que vamos ser quando crescer. É assim que o trabalho é apresentado nas nossas vidas: a resposta ao que somos. Basta encontrar alguém na rua, ensaiar alguns minutos de prosa e percebemos que qualquer conversa banal desaguará nesse tema. O que você faz? Você trabalha em quê?

Isso mostra o quanto o trabalho define nossa inserção no laço social como um repertório central na nossa travessia pelo mundo. Quando se perde involuntariamente um emprego ou se está em busca de uma oportunidade ocupacional, essas perguntas tomam outra conotação. Por vezes, soam como uma incômoda inquisição. Perguntar sobre o trabalho a alguém que está sem trabalho impacta a pessoa de uma forma que só ela saberá.

A falta de trabalho afeta o modo como nos enxergamos. A autoimagem distorcida pelo desemprego não diz apenas sobre quem está desempregado, mas também sobre as ilusões de proteção e poder que integram a composição da relação entre os sujeitos e as organizações. Em uma estrutura em que o trabalho é medida de status social, a perda involuntária de um emprego afeta o senso de si. O desamparo de quem perdeu o emprego vai além das premências materiais que o fato promove, mas torna-se uma ferida exposta na autoestima do demandante de trabalho.

Lembro-me de um filme silencioso e inquietante, “L’emploi du temps” de Laurent Cantet, que no Brasil foi traduzido por “A agenda”. É um filme sobre um recém-desempregado sem coragem de dizer à família que perdeu o trabalho.

Então, todas as manhãs, ele veste seu terno, finge sair para trabalhar, simula viagens e telefonemas de negócios e fica andando pela cidade como um ato desesperado de reintegração à sociedade. O filme traz a alegoria da farsa de Vincent como um retrato das farsas do capitalismo, que apresenta a demissão como uma infâmia social refletida na nossa autoimagem.

Os números refletem o impacto econômico, mas são os relatos dos desempregados que expressam a dimensão humana do desemprego. Os momentos de crise costumam ser laboratórios para os estudos psicossociológicos sobre o desemprego, buscando compreender os efeitos sociais e psicológicos da ausência de trabalho.

A crise dos anos trinta inaugura investigações sobre isso. É o caso do estudo sobre Marienthal, em 1933, que investigou uma povoação em torno do fechamento de uma indústria têxtil que resultou em um desemprego em massa na região. O estudo sinaliza os impactos psicossociais do desemprego, que afetam a percepção sobre o tempo, a espera de regresso ao trabalho, a nostalgia da condição de desempregado, a degradação da vida familiar, a resignação, o abatimento moral e a apatia dos trabalhadores.

Recentemente, a professora Aliya Hamid Rao lançou o livro “Crunch Time: How Married Couples Confront Unemployment”, ainda sem tradução no Brasil. A professora da London School of Economics analisa a diferença entre homens e mulheres em relação às suas experiências com a perda involuntária do trabalho.

O livro revela, por exemplo, as diferentes reações ao desemprego pelo critério de gênero e como isso afeta os casais e sinaliza as assimetrias de gênero no mercado. A pesquisa também sinaliza o papel de políticas públicas e culturas organizacionais no modo como o desemprego é assimilado nas famílias.

Incertezas, angústia e prazer

O cenário de incerteza generalizada no período de pandemia reforça as inseguranças potencializadas com a última crise econômica global e a tendência de precariedade e dissolução do emprego estável. O modelo neoliberal apresenta o desemprego como uma responsabilidade individual. O medo aparece como uma cobra engolindo o próprio rabo.

Para os desalentados, subutilizados e excluídos do mercado de trabalho, o desemprego traz o medo de não encontrar outro emprego. Para quem o tem, a pressão de perder o emprego aumenta a dependência à empresa e isso alimenta a produtividade, através de uma experiência amalgamada de angústia e prazer dentro das organizações.

Esse ciclo de desemprego fisiológico alimenta uma cultura que dificulta ainda mais a possibilidade de repensar nossos papéis sociais fora do trabalho, porque promove um aumento antissocial da sobrecarga de trabalho.

A competitividade do mercado promove o rebaixamento da força de trabalho, de modo que corrói quem está na inatividade e aperta quem está incluído no processo de produção capitalista. Assim, o mesmo trabalho que estrutura nossa identidade, tempo e senso de propósito é o que nos afasta da experiência do tempo social livre.


O desemprego é um naufrágio que afeta nosso ideal de ego, quando apropriamos esse entrelaçamento entre nossas identidades e trabalhos. Nas minhas playlists, costumam aparecer “Altos e baixos”, uma canção de Lula Queiroga, com uma versão linda de Roberta Sá. Em uma estrofe, “eu tô na crista da onda, eu tô fazendo sucesso”. Em outra, “eu tô prestando pra nada, estou ficando obsoleto de mim”.

As instabilidades do mercado de trabalho nos colocam nesses altos e baixos. A condição de desempregado nos apresenta o que Erving Goffman qualifica como uma “identidade estragada”. A coesão interna da sociedade assina uma estrutura cultural de um valor moral pelo trabalho, de modo que esse cenário de incertezas do mercado afeta não só as nossas contas a pagar, mas também o nosso senso de si.

Paulo Carvalho

Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, coordena o grupo de pesquisa Labuta e é professor de Direito e Processo do Trabalho.