Bemdito

A autorrealização no trabalho, uma fantasia que nos consome

No mundo do trabalho, quem é o senhor e o escravo, o amo e o servo, o prisioneiro e o vigia?
POR Paulo Carvalho
Noon rest from work (Van Gogh)

O que te move a trabalhar diz muito do teu lugar no mundo. Dinheiro, status, paixão, talento, relevância social, cada um tem seu combo de motivações. Somos ensinados que o trabalho dignifica o homem, que ele é uma categoria central na busca da nossa felicidade. O cenário atual é de mortes, desemprego, pobreza e crises. Se estamos repensando nossas vidas durante este luto coletivo, é inevitável que o modo como lidamos com o nosso trabalho seja repensado.

Essa montanha-russa pandêmica de sentimentos nos leva também a lampejos de pulsão de vida, a um mergulho existencial que questiona nossos pilares no mundo. E como nos é imposto que o trabalho é um desses pilares, ele também entra na escala de reflexões dessa nossa sede de reescrita de si. Afinal, quem é realizado com o seu trabalho achou um bilhete premiado almejado por toda a gente. Mas pergunto: qual é o preço que pagamos por acolher essa premissa ética de autorrealização através do trabalho?

Do pensamento grego aos pensadores do século XXI, a história das ideias traz referências que justificam o trabalho como dimensão fundamental da condição humana ou como elemento central das nossas vidas. Encontramos o trabalho como um castigo na tradição judaica ou como garantia de salvação eterna na teologia protestante. Encontramos o trabalho como a expressão de denúncia das desigualdades e exploração do mundo industrial no pensamento marxista.

Vocação, identidade ou necessidade?

O trabalho é também visto como a degradação do homem livre ou a expressão contemporânea dessa sociedade do cansaço. Não faltam construções teóricas para discursos que elevam o trabalho a essa presença ubíqua que nos convence de que através dele podemos encontrar um significado para nossa existência. 

A relação entre vocação e identidade pessoal, por exemplo, é um tema presente no pensamento de Max Weber. Para ele, o trabalho tem uma conotação de vocação espiritual, de modo que a adesão a essa ética de devoção ao trabalho traz recompensas que mudam de culturas e momentos históricos, que vão desde a mudança de status social à autorrealização. 

Os estudos do psicólogo Abraham Maslow, ainda na década de 40, sinalizavam que trabalhamos para além da nossa sobrevivência, mas para suprir necessidades psicológicas. Maslow é responsável por uma teoria conhecida como a “hierarquia das necessidades”, que organiza as motivações humanas em uma pirâmide e tem no seu topo a autorrealização.

O pensamento de Maslow foi apropriado pelas teorias da administração na década de 50 e 60, período de uma redefinição estrutural e valorativa do mundo corporativo, que misturou abordagens empresariais com referências da psicologia, para estabelecer essa cultura de uma “administração participativa” com trabalhadores mais autônomos e engajados, ávidos por realização. A pulsão em trabalhar não estaria apenas baseada no pragmatismo da troca do trabalho por uma remuneração, mas motivada também por uma busca existencial por essa autorrealização encontrada no topo da pirâmide. 

Sociedade do cansaço

Ocorre que esse sentido hipervalorizado ao trabalho alimenta muitas vezes uma armadilha que nos leva à exaustão, ao delírio de uma otimização permanente ou à fantasia da busca por um trabalho ideal que nos realize em sua plenitude. Ao mesmo tempo em que assumimos para nós a culpa exclusiva pelo fracasso na inadequação a esse modelo, como se os pressupostos dele não pudessem ser questionados.

Isso confirma porque os textos de Byung-Chul Han têm tido tanto eco nessa busca de compreensão sobre nosso cansaço permanente enquanto nos exploramos, com paixão, voluntariamente, acreditando que estamos nos realizando.   

A chegada do século XXI e a consolidação da comunicação digital confirmaram uma ressignificação do conceito de espaço e de tempo que nos deixou mais disponíveis para o trabalho. O formato de relação de trabalho também foi alterado, afastando-se cada vez mais do modelo de relação de emprego entre um empregador e empregado. O tempo e o lugar do trabalho são reestruturados por uma economia por demandas, que leva a uma corrida para fábricas virtuais não regulamentadas e postos de trabalho precários.   

O período de pandemia permitiu a sobreposição de atividades remuneradas e não remuneradas, com o home office e o teletrabalho, que nos deixam conectados ao trabalho permanentemente. Nos tempos do narcisismo das selfies, as redes estamparam também uma pornografia da produtividade, que fetichiza o desempenho e transforma a performance em mercadoria.   

A fronteira entre a autorrealização e a autoexploração não ficam tão claras. Nessa estrutura que governa o mundo do trabalho, quem é o senhor e o escravo, o amo e o servo, o prisioneiro e o vigia? O trabalho continua em seu lugar ambíguo de castigo e salvação. E seguimos com ele, como aquela imagem kafkiana do animal que arranca o chicote do dono para chicotear a si mesmo. 

Paulo Carvalho

Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, coordena o grupo de pesquisa Labuta e é professor de Direito e Processo do Trabalho.