Bemdito

De todos os riscos, o mais grave é o tédio

A sensação de tristeza e desvigor é geral. Um ensaio sobre a Weltschmerz que nos assombra e sobre a rota de fuga da melancolia
POR Juliana Diniz
Imagem: Henri Cartier-Bresson

A sensação de tristeza e desvigor é geral. Um ensaio sobre a Weltschmerz que nos assombra e sobre rotas de fuga da melancolia

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

A cena se repete com alguma frequência. Os dedos já estão treinados em arrastar na tela do celular o fio de publicações. Me vejo fazendo mecanicamente o gesto centenas, talvez milhares de vezes durante o dia: desbloquear a tela, abrir o aplicativo do Instagram, do Twitter ou de notícias, fazer correr as imagens distraidamente, apagar a tela para alguns segundos depois voltar a conferir se algo aconteceu.

Em geral, há sempre algo novo, mas muito pouco acontece. Uma foto de alguém na praia, uma declaração piegas de amor, bebês cheirando a banho, comidas perdidas em meio a mesas excessivamente decoradas, uma subcelebridade passeando de lancha, duas ou três carteiras de vacinação diante de uma máscara sorridente, o pôr-do-sol.

Não é cômoda a sensação. A pandemia nos deslocou mais fundo na virtualidade e nos mergulhou no abatimento. Mas este não é mais um texto de desabafo, denúncia ou análise. Esse é um texto sobre o tédio – e me sinto entediada demais para argumentar seriamente sobre o que quer que seja. 

O tique nervoso de conferir obsessivamente o celular é um sintoma do mal que me acomete – e a tantos, suspeito. O mal é um indefinido de cansaço mental, exaustão física, amolecimento moral, desesperança em relação ao futuro. Não é uma emoção revolta, cheia de humores exaltados e desejantes de grandes gestos heroicos. É outra coisa. Uma sombra pesada, opaca, atormentada por ruídos e pela fadiga ocular. 

Eu a vejo na imagem cansada e indiferente da minha expressão facial estampada no brilho da tela ao desligar o aparelho. Nada comove, mesmo a indignação com a notícia absurda do dia é muitas vezes rapidamente anestesiada por outra indignação que chega para tornar todos os sustos habituais e, por isso, mais facilmente esquecíveis. Hoje sei que nos habituamos a tudo, inclusive à desesperança.

Os alemães – que gostam de nomear bem as coisas – inventaram um nome para definir a sensação geral que nos acomete neste inverno pandêmico. Weltschmerz. Dor de mundo, numa imperfeita tradução literal. Ou seria dor do mundo?

Uma sensação de desgosto, aborrecimento, enfado, fadiga, languidez ou melancolia experimentados quando o mundo não expressa o que você acha que ele deveria expressar. Não se trata de um idealismo tolo, ou uma alienação da realidade. Ao contrário. Você é acometido pela Weltschmerz justamente por estar exposto ao excesso de realidade, quando a brutalidade do mundo é tão sufocante e gradativamente ampliada que é impossível reagir em defesa da sua sanidade. O resultado é o exaurimento da energia, um desvigorar, um “despombalecimento”, no dizer poético de Mariana Marques, também colunista deste espaço. 

O desencanto como espírito de uma época ou geração pode ser bem identificado quando olhamos para o passado, e tentamos alinhar a cronologia da história em perspectiva. É o saldo de grandes períodos de guerra, peste, fome, penúria ou corrupção generalizada. As pistas são deixadas pelas artes, como não poderia deixar de ser, os artistas são afinal como radares que captam de forma ampliada os humores de um povo num certo tempo.

Trago dois exemplos.

Em seu belo livro sobre o medievo, O Outono na Idade Média, Johan Huizinga escreve sobre os humores de um período reconhecido por sua melancolia. Segundo ele, “quanto mais profundos o desespero e a consternação diante de um presente incerto, tanto maior será esse desejo. No período final da Idade Média, o tom geral da vida é de amarga melancolia. A alegria de viver e a confiança na capacidade dos grandes atos, como ocorre na história renascentista e na iluminista, mal são notadas na esfera franco-borguinhã do século XV. (…) Onde quer que se procure o legado dessa época – nos historiadores, nos poetas, nos sermões, nos tratados religiosos e em documentos notariais –, com poucas exceções, encontramos apenas lembranças de brigas, ódio, maldade, ganância, selvageria e miséria”.

Huizinga resgata o poema de Eustache Deschamps, que poderia facilmente se referir a este tempo de agora:

Tempo de dor e tentação
Época de pranto, inveja e tormento,
Tempo de langor e danação,
Época que se aproxima do fim,
Tempo cheio de horror, que tudo faz errado,
Época de mentiras, cheia de orgulho e inveja,
Tempo sem honra e sem julgamento verdadeiro,
Época de tristeza, que abrevia a vida.”

Trago outro registro mais próximo temporalmente de nós, mas igualmente desencantado. É de Carlos Drummond de Andrade a confissão no poema Congresso Internacional do Medo: 

“Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”.

Se o abatimento que eu sinto e esse desvigor moral são antes sintomas de um mal-estar coletivo e não de uma melancolia casual, há de existir uma rota de fuga já conhecida para nos orientar neste tempo amedrontado. Me pego pensando no que faz meu corpo ferver, as lembranças mais pulsantes de momentos em que tive a certeza de estar viva e desejar viver mais.

Penso em tudo que já me despertou tesão. Os momentos em que realizei muito, disposta a desbravar o mundo.

Porque a antítese do abatimento é o arrebatamento, é ter apetite. A hipérbole, o descontrole das paixões mais desvairadas, quando o que vem antes da razão é o fluxo, que inunda, escorre e, depois, acalma, para pacificar a ressaca que chega com a satisfação do impulso. 

O que te dá tesão, afinal? É a pergunta que você precisa se fazer diante do espelho para neutralizar os efeitos doentios de estar vivendo aqui e agora. Quem não vive hoje com medo da morte? Com medo do outro? Com medo de amanhã? E o que te faria esquecer esse medo em nome da vida?

Deixo como regalo de domingo algumas palavras que estalam e crepitam na imaginação, como anúncios. Palavras aveludadas. 

Lascívia. Luxúria. Carícia. Delírio.

São palavras com longos Ls e Ss adocicados, que trazem para perto memórias felizes que existem para nos fazer acreditar na lei do retorno da alegria. Elas sibilam nos ouvidos a sabedoria de outro mestre bruxo, o escritor colombiano Gabriel García Márquez: “é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”. 

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Serviço

O Outono da Idade Média
Johan Huizinga
Penguin, 2021
696 pgs,
R$ 74,90

Sentimento do Mundo
Carlos Drummond de Andrade
Companhia das Letras, 2012
88 pgs,
R$ 44,90

O amor nos tempos do cólera
Gabriel García Márquez
Record
432 pgs,
R$ 64,90

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.