Bemdito

Contra o surto: os matos

Contra a loucura, faça as pazes com os cheiros do mato e reconecte-se com a parte de nós que permanece viva
POR Mariana Marques
Cape Cod Morning (Edward Hopper), do Smithsonian American Art Museum, cedido por Sara Roby Foundation

Contra a loucura, faça as pazes com os cheiros do mato e reconecte-se com a parte de nós que não desiste, que permanece viva

Mariana Marques
marianamarquesb@gmail.com

O dia já amanhece caótico. Junto do primeiro movimento do dia, desligar o despertador do telefone que insiste em gritar, vem a primeira notícia ruim. É também junto da última notícia ruim que o dia termina. Nesse intervalo, mais ou menos equivalente a 18 horas seguidas, quem conseguir sobreviver é rei.

Minha amiga Mariella me questiona, em bom cearês: como não despombalizar completamente diante desses tempos tão difíceis? Fiquei dias sem resposta, até entender que a única coisa que me faz manter de fato o contato com a normalidade é a natureza.

Há um ano, mais ou menos, tive a sorte de iniciar uma mudança de vida que mudou, primeiro, meu olhar para o que era antes completamente invisível. Depois de 2h15 de estrada, todas as sextas, estamos semanalmente chegando ao Icapuí, completamente esgotados da semana. Em poucas horas, é possível ouvir algo próximo ao nada, que é na verdade tudo que importa: vários grilos mobilizados em um protesto – provavelmente, contra o Bolsonaro -, cigarras, passos ligeiros do que parecia ser um cassaco, rasga-mortalha, batida de asa morcego, pouso de mariposa. O que antes era, de fato, o barulho de nada.

O acordar no dia seguinte acaba reforçando o que eu desconfiava: tudo permanece resistindo. Cacos de falésia que viram poeira no cabelo, algas, arraias em defensiva, um peixe boi subindo para respirar. Ivete passa com o facão atrás de côcos, seu João acordado desde muito cedo com seu boné e seus olhos cor de água, translúcidos, carrega um peixe gigante. Um olhar de guerreiro em dia de batalha vencida. Três meninos brincando, sentados, um encarrilhado no outro como um trem, derrubados em festa pela primeira onda da maré que avança. Aquela, eles têm certeza, é a primeira onda da maré cheia. Aposto que sabem, naquele intervalo de seis horas, em qual segundo a maré deixa de ser seca. Assim como em qualquer momento do dia, vendo com os olhos ou não, Sandoval ou Vevéi sabem exatamente em cima de qual pedra estamos, chamando-a pelo nome.

Não que as mortes diminuam ou o gosto amargo da desgraça se dilua, efervescente, na maresia. Tudo permanece triste como está, mas o movimento do sol, a direção do vento, saber da lua o que será naquela noite, molhar as plantas ou tentar adivinhar chuva são conexões com a parte de nós, desse universo, que não desiste. Que permanece, que resta viva e pontual.

Procuro o máximo possível de tempo deixar os fiapos de capim-agulha, entranhados nos meus cachos, uma penugem de areia sobre a pele, os pés engrossados de andar descalça. Até que chega o domingo como uma quarta-feira de cinzas mal engendrada a me levar embora dali. O mesmo dedo que escreveu na areia um M, um A, um EU QUERO VIVER, vai amanhã desligar o despertador às 7h, ver a primeira notícia ruim e se obrigar a levantar, a espelho dos seres do Icapuí.

O que desejo é que procure seu pedaço de mato, que observe as coisas pequenas, que faça as pazes com os insetos, porque fomos criados ao contrário, achando que eram todos nossos inimigos, e os pobres passam o dia inteiro, minuto após minuto, trabalhando silenciosamente a nosso favor. Pelo menos a maioria deles. Faça as pazes com os cheiros do mato. Com as casas longe, com os vizinhos que só sabemos os cabelos grisalhos voando a muitos metros, quando como Beatriz, lá da beira do mar, me dá tchau.

Desejo que seu mato tenha tido uma história tão interessante como a da parteira cega, que viveu no passado, na Praia de Picos. Angelina o nome dela. Mais uma lição, para mim, pelo menos, de que não é desta vez que o mundo acabará. É das mãos de Angelina, apanhando-nos das entranhas de nossas mães, que também nasce um futuro. Capenga, viu, mas um futuro. É nele que estaremos. É o que tem.

Despombalizar pontualmente tem sido rotina, eu sei. Mas viver despombalizado completamente tá proibido. Se assim estiver, você ou qualquer um dos seus, fuja, imediatamente, para os matos.

Mariana Marques é publicitária e artista plástica.

Mariana Marques

Publicitária e artista plástica.