Bemdito

Ideias para adiar o enlouquecimento do mundo

A brutalidade do tempo presente convida ao escapismo, mas a vida pede coragem e enfrentamento
POR Glória Diógenes
Leonor Brilha

Cansei de escutar minha avó dizer, ao presenciar ou saber de algo absurdo, “isso é o fim do mundo”. Considerava, na minha meninice, aquilo um exagero. Seus olhos, que guardavam imagens das duas maiores guerras do século XX, pareciam dizer para os meus – você ainda não viu nada menina. Ultimamente tenho me perguntado, mesmo com todo o otimismo que me é peculiar, se isso tudo que estamos vivendo é o fim de mais um mundo. 

Após longo período afastada de médicos e laboratórios, fui fazer o tal check up.  Os atrasos, as antessalas de esperas, entre médicos e exames, me trouxeram farto material para a percepção de dramas existenciais de nosso tempo. O mundo parece dividido entre quem teve Covid-19 e suas inumeráveis sequelas, quem não teve, mas perdeu alguém próximo, e quem não teve, não perdeu ninguém, mas se diz “noiada”, tal qual pude escutar de uma jovem moça que fazia um eletrocardiograma na sala vizinha a minha. Meu coração dispara o dia todo doutor, só falta sair pela boca. Tenho certeza de que devo estar pertinho de morrer. O médico, pacientemente, diz – é sua queixa e de muitos que vêm ao consultório todos os dias.   

Salas de atendimento lotadas, tempo de demora excessiva, cadeiras com um “x” a indicar a necessidade de distanciamento e pessoas amontoadas no aguardo das chamadas. Uma senhora de quase noventa anos me segredou, contrariando as regras de afastamento – já vivi muitos anos, mas nunca tinha visto o povo todo ficar doido ao mesmo tempo. Isso é pior que o fim do mundo minha filha. Não pude esticar a conversa, mas aquela frase ressoou dias e dias. Já perto de ir embora, a senhorinha me lança um olhar cúmplice, diante do alargado tempo de espera e fala, visivelmente irritada – só se fazendo de doida pra aguentar isso né?

Passei a reparar o que via com as lentes da astuta senhorinha. Foi quando li a notícia da briga de um casal no aeroporto de Confins, com funcionários de uma empresa aérea. A manchete dizia – homem quebra guichê por atraso de aeronave. No corpo da matéria é informado que a mulher anuncia seu ato, vou começar a quebrar. Logo depois, o marido pega o pedestal organizador da fila e arremessa contra o balcão de atendimento.  

Até aí podíamos estar diante de um assunto corriqueiro, sem importância na vida de um país marcado por tantas turbulências políticas, econômicas e sanitárias. Qual o quê! A notícia rendeu não apenas infindáveis postagens nas redes sociais como uma sucessão de comentários de internautas. Muitos defendiam a mulher, o marido, e seu bebê de cinco meses, no que tange aos “direitos do consumidor”. Outra lista de argumentos destacava a vulnerável condição dos funcionários da empresa diante das agressões e da notória ofensa moral.  

Logo depois, vídeos voltam a ocupar a internet veiculando imagens de outra briga. Essa, no aeroporto de Cumbica.  Dessa vez, devido ao impedimento de embarque de um casal e seu coelho de nome Alfredo. Logo após o digladio, incluindo pancadarias, uma foto do casal e do coelho, já a bordo, percorre várias plataformas. É fácil. Basta inserir no Google coelho Alfredo e aeroporto, para que se possa acessar uma quantidade absurda de matérias sobre o assunto. Uma delas explica que a proibição de embarque adveio do fato da companhia aérea ter considerado o coelho uma espécie de roedor. Em seguida, esclarece que Alfredo na verdade é um tipo de lagomorfo, uma vez que tem quatro dentes incisivos. E uma claque de plantão acompanha as postagens do coelho no Instagram. Quero dizer que estou bem, estou muito feliz por sinal, ganhei diversas frutas durante a viagem, estou agora aguardando com papai e mamãe o próximo vôo! Assim que eu chegar na Irlanda avisarei! Lambidinhas para todos vocês!”

Enquanto isso, no mesmo mês, o presidente viaja a Dubai, cujo objetivo, segundo ele, seria o de atrair investidores para o Brasil. A comitiva brasileira que participa da Expo Dubai custou ao governo, de acordo com informações extraoficiais, cerca de R$ 1.17 milhão, podendo chegar até a 3,6 milhões. Na abertura do “Fórum Investi in Brazil”, o presidente, diante de críticas sobre o desmatamento da Amazônia, responde que um passeio pela floresta é algo fantástico – até para que os senhores vejam que a nossa Amazônia, por ser uma floresta úmida, não pega fogo. E afirma, em seguida, que mais de 90% da área se encontra preservada – está exatamente igual quando foi descoberta em 1500.

A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), a maior do planeta, também em novembro, trouxe ainda mais vexame e vergonha para o Brasil. Soube-se que, em um único dia, 29 de setembro de 2021, 53 novos agrotóxicos foram liberados para uso extensivo em nossos solos. São mais de 1,4 mil desde o início de uma gestão que luta, incansavelmente, em prol da destruição ambiental. Cidades inteiras são engolidas por nuvens de poeira e assoladas por lentos processos de envenenamento.

Ainda em novembro, Fortaleza, a quinta metrópole mais populosa do Brasil, foi acometida por um grande incêndio. O fogo atingiu seu parque estadual, o Cocó, o maior em área urbana do Norte e Nordeste, sendo o quarto da América Latina. Além de sua extensa floresta, de suas dunas milenares, da vegetação de restinga, ele abriga mais de 130 espécies de aves, se constituindo ainda como descanso para várias aves migratórias. 

Um dia após o início da queimada, a cidade amanhece envolta em fumaça. Nas ruas, dentro de veículos de vidros fechados, a população seguia indiferente, enquanto animais agonizam com o fogo. Quase nenhuma polêmica, revolta, indignação percorreram as redes e as mídias sociais, afora as contumazes vozes que costumam estar na linha de frente das lutas em defesa do meio ambiente. Trata-se, provavelmente, de um incêndio criminoso, já que foram mapeados 12 focos pelo corpo de bombeiros. Nas palavras do jornalista Demitri Túlio, em postagem no Instagram, – No rescaldo de um fogo que começou na última quarta-feira, 17/11, a fauna e a flora perderam pra estupidez.

Qual seria a relação de tudo isso com o coelho Alfredo e o casal que tenta quebrar um guichê com um pedestal de segurança? Enquanto o mundo dá sinais de exaustão, brada por socorro, se debate diante de gestões da morte, seguimos tragados por cenas da banalidade da vida. Exemplifico. Após uma alongada pane, passei a temer viagens aéreas. Antes de embarcar comprava uma revista Cult ou Bravo (que já não existe mais) e uma Caras. Pensava assim, em situações de turbulência, mergulho na vida ilusória da revista de fofocas até que o voo se estabilize. Talvez seja essa uma boa metáfora, nossa aeronave é sacudida por tempestades, vácuos e enquanto isso, parte de nós se distrai com amenidades. 

No barco de um país à deriva, existe formas diversas de se fazer de doido. Uns até parecem desconfiar que algo não anda bem e correm de um lado para o outro, tentando viver tudo num só instante. Alguns, brigam consigo mesmos, com os que encontram pela frente, transgredindo qualquer tipo de limite e regras coletivamente pactuadas. Outros, imaginam um poder que não possuem. Assentados na suprema ilusão da onipotência, dispensam vacinas e põem em risco suas vidas e a de muitos. Uns poucos, tangidos pela desconfortante lucidez, tremulam e tateiam palavras catalizadoras de outros mundos possíveis. 

As Ideias de Krenak para Adiar o fim do mundo, provavelmente, não sensibilizariam os que batem palmas para a chuva de venenos, os que diante das matas queimadas comentam indiferentes – é só plantar que nasce de novo – os que demandam festas de réveillon e carnaval enquanto a pandemia se intensifica em países mundo afora. É bem mais fácil comover-se com a chegada de Alfredo na Irlanda. Acreditar que a Amazônia está tão intacta quanto em 1.500. Que no Cocó, facilmente, tudo renascerá das cinzas.   

Novembro não terminou. Ainda há tempo de olhar o céu e ativar fogueiras de indignação. Prometi no título dar ideias sobre como driblar o enlouquecimento. Elas estão aqui, envoltas na nuvem esfumaçada das palavras. Na obra Nudez, Agamben dá uma pista sobre “o que podemos não fazer” quando forças ativas são impedidas de seu exercício. Aquele que é distanciado de sua impotência, perde, acima de tudo, a capacidade de resistir. Tão Brasil, tão nós! Nada, diz ele, rende tantos pobres e tão pouco livres quando não se pode garantir a verdade do que somos. 

É essa a senha. Mirar de frente o caos. Sentir muito diante do que não se pode fazer. Considerar que se é capaz de enlouquecer. Vez por outra, dilacerar-se. Até que o fim do mundo aponte, lá onde se instala a frágil pele do medo, outras razões de viver.  

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).