Bemdito

Maria Sylvia Nunes e sua estrela

Uma entrevista com os organizadores da obra que lança luz sobre a vida de Maria Sylvia Nunes
POR Ricardo Evandro

Uma conversa com Andrea Sanjad e Nelson Sanjad, organizadores da obra Daquela estrela à outra: Cartas a Maria Sylvia Nunes, lançada no ano passado.

Ricardo Evandro: Andrea e Nelson, muito obrigado por me concederem esta entrevista. Antes de falarmos do livro, sobre o qual vamos conversar hoje, Daquela estrela à outra: Cartas a Maria Sylvia Nunes (2021), gostaria que vocês pudessem falar sobre vocês e sobre a relação que possuíam com Maria Sylvia Nunes.

Andréa: Nossa relação com Maria Sylvia era de amizade. A conheci em meados dos anos 1980, ainda estudante universitária, por meio de um amigo comum, Rui Sergio Sereni Murrieta (hoje, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo), que me levou para assistir a uma aula que ela daria sobre “Édipo Rei”. Vários amigos estavam ali. Do que lembro bem, foi do fiasco de nossa interpretação durante a leitura dramática da peça, para a qual veio somar a voz o João Augusto Ó de Almeida. A isso se deve, provavelmente, o empenho dela em nos instruir… (risos). Pouco tempo depois, junto com o Rui, fui trabalhar com o Benedito na revisão dos originais da edição crítica de “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, que ele estava organizando para a Unesco. Coisas assim nos reuniram cada vez mais e com maior frequência, até que já não precisávamos mais de motivo algum. O gosto pelo encontro já bastava. Mesmo nos períodos em que eles ou nós estivemos ausentes de Belém, mantivemos um contato próximo e amigo.

Nelson: Conheci Maria Sylvia em 1987, também estudante universitário, por intermédio de Andréa, que já frequentava a Casa da Estrella. Um dia a acompanhei na visita e ocorreu comigo o encantamento que muitos experimentaram. Tornei-me (nos tornamos) assíduos, em visitas para conversar, ver filmes, ler poesia, ouvir música. Em um desses encontros a Maria Sylvia planejou nosso casamento (risos) e foi também através deles que minhas habilidades com a organização de arquivos e com a datilografia foram descobertas. Fui logo convidado a trabalhar com Benedito. Eu passava três tardes por semana com ele organizando os papeis que havia acumulado durante décadas, trabalho que findou somente em 1998 porque me mudei com Andréa para São Paulo para cursar o mestrado e o doutorado. Foram dez anos arrumando, selecionando, inventariando e acondicionando papeis, sempre sob a supervisão de Benedito, além de o ajudando a datilografar as versões finais de alguns trabalhos que escreveu. De volta a Belém, retomei esse trabalho sempre que solicitado e, com mais frequência, depois do falecimento de Benedito, a pedido de Maria Sylvia.

RE: Na Apresentação do livro, há uma citação de Walter Benjamin, lembrando da forma de texto como coletânea de cartas – que “não deve ser visto com nostalgia, mas como possiblidade de vida”. Sobre isto, como surgiu a ideia de organizar e escrever o livro, e neste formato epistolar? 

Andréa: Esse era o meio de comunicação preferido de Maria Sylvia. Ela escrevia cartas para os amigos mesmo que estivessem morando na vizinhança. Escrevia nas datas festivas, quando era instada a apresentar um livro ou concerto, para agradecer a uma homenagem etc. As cartas guardam o mundo que duas pessoas acessam. 

Nelson: De certa maneira, o desaparecimento de Benedito (em 2011) e o de Maria Sylvia (em 2020) marca o fim de uma era para duas ou três gerações de intelectuais, artistas, professores e escritores de Belém. Eles são representantes de uma vanguarda artística e de nossa melhor reflexão intelectual, os últimos remanescentes da geração modernista local que despontou na década de 1940. Sabíamos da relevância desse assunto para a história do Pará e do Brasil, o que também nos motivou a reunir e publicar os testemunhos, ou fragmentos de memórias, das pessoas que conviveram com Maria Sylvia.

RE: O primeiro texto do livro é assinado por vocês dois. Trata-se, como diz no título, de notas biográficas da carreira de Maria Sylvia e de sua fundamental contribuição para o teatro brasileiro. Sobre isto, confesso que já cometi muitas vezes o erro de dizer que ela era “atriz”. Então, se puderem, gostaria que falassem, ainda que brevemente, sobre como o teatro chega à vida de Maria Sylvia e sobre sua contribuição para o teatro no Brasil?

Andrea: O único papel que Maria Sylvia representou na vida, segundo contava, foi o de Menino Jesus no presépio vivo do Natal da família Silva. Não se considerava dramaturga, como muitos afirmam. Ela se dizia “diretora de teatro” e “professora”. O primeiro contato dela com o teatro foi na casa de seus pais. Primeiro, com a metodologia de alfabetização da mãe – leitora de Piaget. Quando Maria Sylvia foi para a escola, com seis ou sete anos de idade, já sabia ler e escrever. “Aprendi naturalmente”, dizia. Sua mãe nunca a obrigava a nada e jamais ocupava sua atenção por mais do que alguns minutos por dia. Depois, Angelita, sua irmã mais velha, foi presidente da União Acadêmica Paraense (que congregava o movimento estudantil secundarista na década de 1940) e criou, juntamente, com Margarida Schivasappa, o Teatro do Estudante – cujos ensaios eram na casa de seus pais. Maria Sylvia, com seus dez ou doze anos, observava tudo bem de perto. E ajudava em muitas atividades. Ela amava essas lembranças. Embora falasse muito pouco sobre isso, quando falava, era com adorável entusiasmo juvenil. Fez Direito por uma convicção pessoal de que o pai merecia essa prova da mais ‘alta estima e admiração’. O curso teria a vantagem de uma formação abrangente. E, afinal, se não fosse Direito, ela faria o quê? O curso de Teatro coube a ela e sua geração criarem. Tem uma coisa que ela defendia. Que o teatro deveria fazer parte da formação de todo mundo…

Nelson: Antes mesmo de ir estudar com Tania Balachova em Paris, em 1960, Maria Sylvia já defendia uma pedagogia da formação teatral. Isso é evidente no nome do grupo fundado por ela, Benedito e Angelita em 1957: Norte Teatro-Escola. Também fica evidente no que Maria Sylvia dizia, como “o teatro ajuda a domar nossos monstros” – o que pode ser entendido como a defesa da formação teatral enquanto processo de autoconhecimento ou como a defesa do teatro enquanto motor da transformação social. Ou os dois. Mas isso são apenas conjecturas nossas. O fato é que não há investigação nem registros sobre o método usado por Maria Sylvia para dirigir espetáculos nem para formar atores e atrizes (esperamos que os/as discípulos/as dela o façam). O que temos são registros dos espetáculos que Maria Sylvia dirigiu – e nesse quesito a contribuição dela à história do teatro no Brasil é imensa. Foi dela a primeira montagem de “Morte e vida severina” (1957), cuja adaptação cenográfica foi lindamente elogiada pelo próprio João Cabral de Melo Neto; também foi dela a primeira montagem brasileira de “Biedermann e os incendiários” (1962), peça explosiva de Max Frisch, que muitos acusaram de ser subversiva à época. Maria Sylvia foi a primeira mulher a ganhar os prêmios de “melhor espetáculo” (“Morte e vida severina”) e “melhor direção” (“Édipo Rei”) no Festival Nacional de Teatro de Estudantes, que lhe garantiram a possibilidade de estudar na Europa. Esse espírito indômito ainda se manifestava aos 81 anos, quando aceitou o desafio de fazer a direção cênica de “Carmina Burana”, de Carl Orff, durante o Festival de Ópera do Theatro da Paz em 2011. Isso foi um feito raríssimo em todo o mundo, uma vez que a peça é levada, geralmente, como concerto em razão da ausência de um enredo. Só para dar a dimensão desse último trabalho: 200 pessoas estavam em cena, entre orquestra, coro, corpo de baile, solistas, atores e atrizes.

RE: “Miúda, morena, arredia e muito simpática…”, este é um trecho do livro no qual vocês citam uma descrição que fizeram de Maria Sylvia Nunes, publicada pelo jornal Correio do Povo, em janeiro de 1962. Tento imaginar, aqui, os desafios enfrentados por uma mulher muito jovem, que vem do norte do Brasil, da cidade que não há muito tempo estava quase em total isolamento do resto do país – a Rodovia Belém-Brasília tinha sido inaugurada só dois anos antes, em 1960, marco histórico para o aumento demográfico e circulação de bens entre a Capital do Pará e o Brasil. Além disto, ainda nesta mesma década, em 1964, o país acabou por sofrer um duro golpe no seu experimento democrático, que representou “o grande trauma de nossa geração”, como disse Benedito Nunes. Por isto, pergunto: de que maneira a política esteve presente nas produções teatrais de Maria Sylvia Nunes? E como estes acontecimentos históricos atingiram seus sonhos e obra?  

Andrea: De modo geral, Maria Sylvia falava muito pouco sobre si mesma. Do mesmo modo, nunca vi ninguém tomá-la equivocadamente ou conduzir-lhe o passo. O golpe de 1964 a encontrou (e ao Benedito) em plena atividade e com projetos de estudo fora do país. Como sabemos, foram anos duros e tristes, que interromperam projetos e obrigaram a refazer sonhos. Eles decidiram ir para a Europa. Estavam em Paris em maio de 1968. Acompanharam de perto aqueles acontecimentos também, igualmente traumáticos para a geração deles. Mas essas questões, essas tristezas, décadas depois, quando os conhecemos, pareciam ter sido diluídas porque foram canalizadas para atividades criativas – e foram muitas. O importante é que se mantiveram atentos e ciosos dos acontecimentos da vida, sempre fiéis a princípios éticos, à liberdade de pensamento, à tolerância, ao compartilhamento de conhecimento…

Nelson: Creio que a obra teatral de Maria Sylvia é eminentemente política. Não no sentido partidário ou de militância aguerrida, mas no sentido grego mesmo, como experiência coletiva, como processo social em benefício da Pólis, do fortalecimento da democracia, da cidadania, da educação, da cultura. Em sua juventude, ela dizia que o teatro só faria sentido se fosse feito pelo povo e para o povo, ou seja, ela trabalhou para desconstruir uma ideia muito em voga na época de que apenas a elite seria capaz de apreciar o teatro de qualidade, de que ele residia no âmbito de uma cultura erudita, inacessível à população em geral. Todo o movimento do teatro de estudantes, do teatro de vanguarda e também todo o movimento cineclubista, aos quais ela, Benedito e Angelita aderiram desde a primeira hora, nas décadas de 1940 a 1960, lutaram contra um elitismo excludente no campo das artes, pela ampla disseminação de produtos culturais, sejam peças ou filmes, assim como pelo amplo debate sobre esses produtos. Eles acreditavam que essa era a melhor maneira de mudar a sociedade – o poder da arte! Basta ver as peças que Maria Sylvia escolheu para montar! Tratavam, basicamente, de dois mundos: os dramas humanos, filosóficos mesmo, portanto, universais e atemporais, e os dramas políticos da sociedade brasileira – repito, brasileira, mesmo quando a peça era assinada por um estrangeiro, como o moralismo, a corrupção, a hipocrisia, a desigualdade, o preconceito, o racismo. Está tudo lá! Basta ler os textos que ela quis montar.

RE: Enquanto pensava sobre quais perguntas iria fazer a vocês, cogitei até em não questionar sobre a relação do filósofo paraense Benedito Nunes com Maria Sylvia. Pois achava que seria desnecessário tratar deste tema em uma entrevista sobre a “estrela outra”, cuja estrela tem luz própria, tão intensa quanto a do Filósofo da Travessa da Estrella, em Belém, marido de Maria Sylvia. Mas assim como é impossível se falar da vida de Benedito sem Maria, também é impossível falar dela sem tratar de seu também companheiro de produções artísticas. Então, minhas perguntas são: como os dois se influenciaram, se se influenciaram, e como eles resistiram às mudanças políticas nesta região amazônica, neste país de tantos altos e baixos em nossa democracia, que tanto atingem a liberdade artística?  

Andrea: A impressão mais forte que tive quando conheci a Casa da Travessa da Estrella foi como pessoas tão fortes coabitavam com tanta harmonia. Havia um respeito que vinha antes, uma admiração recíproca, uns pelos outros. E as muitas afinidades eram bem cultivadas. De modo discreto e silencioso, embora perfeitamente verificável e seguro, Maria Sylvia e Benedito caminharam juntos. Respondendo à segunda pergunta, penso que as contribuições de ambos, tanto no âmbito acadêmico quanto no meio cultural/artístico, são eloquentes provas de resistência, além de poderosa lição de liberdade.

Nelson: Também acho que ninguém pode avaliar com precisão como Maria Sylvia e Benedito se influenciaram mutuamente, mas é certo que isso aconteceu. Em alguns momentos podemos ver claramente uma parceria, como quando eles criaram, mais a Angelita, o Norte Teatro-Escola. Ali cada um tinha uma função. Um traduzia, outro dava preleções, um terceiro ensaiava os atores e assim o grupo, como um todo, produzia a peça. Em outro momento, vemos Benedito assumir a direção do Serviço de Teatro da UFPA, enquanto Maria Sylvia implantava e coordenava o curso de formação de atores (1963). Ele contava com grande senso de humor que, nessa época, ele era apenas o “marido da diretora”. Depois, quando a carreira dele exigiu maior dedicação, Maria Sylvia foi fundamental para que ele pudesse ministrar cursos em várias cidades brasileiras e estrangeiras, algumas vezes por longos períodos. Enfim, como Andréa disse, caminharam juntos. E como Andréa disse também: o legado de ambos, por si só, é prova de como enfrentaram as agruras políticas. Basta lembrar que, já em plena ditadura, Maria Sylvia cria, através do Serviço de Teatro da UFPA, o Teatro Estável da Cidade de Belém (1967). Essa companhia não deu certo porque já não havia condições para o livre exercício do pensamento e da arte, mas ela tentou até o final. Não sendo possível seguir com esse plano, quando os dois voltaram da Europa, Benedito investiu muito trabalho e energia na criação do curso de Filosofia da UFPA – ainda em plena ditadura (1973). Treinou professores locais e trouxe outros de fora, incluindo Michel Foucault. Ele contava que suas aulas eram vigiadas e das pressões que sofria, mas que nunca cedeu. A propósito da visita de Foucault, o Professor Ernani Chaves publicou um artigo em Carceral Notebooks em 2017.

RE: O filósofo italiano Giorgio Agamben diz que “o sujeito fotografado exige algo de nós”. Faço esta citação porque algo impossível de não ser notado é o fato de que o livro Daquela estrela à outra: Cartas a Maria Sylvia Nunes (2021) também é uma coletânea de fotos. Muitas delas provavelmente nunca divulgadas na imprensa ou em outros meios. Sobre o tema, gostaria de saber como foram selecionadas estas imagens, estes registros? E se puderem, gostaria que contassem um pouco das histórias destas fotos e de seus gestos, desde a capa, passando pela foto de Maria Sylvia no Theatro da Paz, quando já idosa, no ensaio de O amor do poeta Amor e vida de uma mulher, de Robert Schumann, em 2003, até as fotos de sua casa, na Travessa da Estrella, ao final do livro.

Andréa: Maria Sylvia e Benedito gostavam de fotografia e em todos os compartimentos da casa havia lugar para fotos de amigos e pessoas queridas. Quando estávamos morando longe, as cartas iam e vinham recheadas de fotos com dedicatórias encantadoras e/ou engraçadas. Pensamos em levar isso para o livro. As fotografias são, principalmente, do acervo dos autores. Nosso desejo sempre foi que contribuíssem com o depoimento e com fotos, dialogando com o texto, em complemento a este. É difícil, portanto, aqui nesse espaço, mencionar uns e não outros. As fotos no Theatro da Paz e algumas da inauguração do Teatro Maria Sylvia Nunes foram publicadas em matérias de jornal e são de Elza Lima, que, naquela ocasião, integrava a equipe da SECULT. Em alguns casos, recorremos a instituições, como no caso das imagens da cerimônia de outorga do título de Professora Emérita, que são da Universidade Federal do Pará. Solicitamos e obtivemos a permissão de reprodução no livro. 

Nelson: Quanto à nota biográfica, as fotografias foram obtidas em diversos acervos privados, algumas, de fato, inéditas, enquanto outras já publicadas. Por decisão consensual, as imagens foram tratadas, mas não restauradas. Preferimos manter as marcas do tempo. A foto da capa é de James (Jim) Bogan, poeta norte-americano que viveu em Belém e se tornou amigo do casal Nunes. Já havia sido publicada em um livro de Jim, que não circulou no Brasil – e Age de Carvalho teve a lembrança de trazer para a capa. O importante é que as fotos retratam Maria Sylvia em diversas idades e em gestos característicos, como o olhar atento, o sorriso, os cabelos curtos (à Chanel) sobre o rosto, o jeito de jogar a cabeça; e também em companhia de amigos ou em momentos que julgamos relevantes. Outras fotos documentam algumas de suas montagens teatrais dos anos 1950-1960, infelizmente não registradas em película.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.