Bemdito

Uma atriz na ABL

Com Fernanda Montenegro eleita para a Academia Brasileira de Letras, instituição passa a celebrar aquilo que o teatro tem de mais efêmero
POR Magela Lima
Leila Fugii/Divulgação

Desde o último dia 4 de novembro, quando veio a público o resultado da eleição da Academia Brasileira de Letras (ABL) que confirmou a indicação da atriz Fernanda Montenegro para ocupar a cadeira de número 17, muito se tem falado que, enfim, se fez justiça e o teatro chegou àquela tão importante e tradicional instituição. Engano. O teatro sempre teve assento entre os nossos imortais. Quando a ABL foi fundada, em 20 de julho de 1897, no Rio de Janeiro, Artur Azevedo (1855-1908) estava lá, absoluto e influente, entre os pioneiros. Naquele mesmo ano, um pouco antes, diga-se, chegava aos palcos um de seus textos mais populares, “A Capital Federal”.

Artur Azevedo, porém, não é um autor de teatro, apenas. Ele é o próprio teatro. Para o bem e para o mal, para o entusiasmo do público e para o enfado da crítica, ele carregou o teatro brasileiro do século XIX. É uma figura enorme, que se projeta em diversas e até mesmo contraditórias áreas da vida teatral da cidade do Rio de Janeiro, o Brasil de então. Ele era um movimento. A professora Ângela Reis costuma dizer que Arthur Azevedo está para o teatro brasileiro como Shakespeare para o teatro inglês e Moliére para o francês. De todo modo, parte expressiva dos louros que ele colheu em vida se deve a sua relação visceral com a palavra, com o texto escrito, com o papel. Artur Azevedo é autor de cerca de 150 peças teatrais, além de ter colaborado em mais de 45 jornais.

Feito esse breve reparo, é possível festejar com mais empolgação a chegada de Fernanda Montenegro ao seleto grupo dos 40 imortais da Academia Brasileira de Letras. Eleita por seus pares com 32 dos 34 votos possíveis naquela sessão (dois de seus futuros colegas acharam mais prudente votar em branco que prestigiar sua indicação), Fernanda Montenegro, se não introduz o teatro na instituição, introduz, sim, e em definitivo, aquilo que de mais sensível e efêmero compõe a poética teatral: a atuação, o trabalho do ator, da atriz. Embora o estatuto da Academia Brasileira de Letras exija de seus candidatos a membro a publicação de, pelo menos, um livro, definitivamente, não é isso que justifica a presença de Fernanda Montenegro na entidade.

Autora de um único título, a autobiografia “Prólogo, ato, epílogo: Memórias”, publicada pela editora Companhia das Letras, em 2019, Fernanda Montenegro, aos 92 anos, no entanto, tem uma obra monumental como artista da cena. Cruzando diversas mídias, desde o rádio quando ainda adolescente, ela emprestou (na verdade, deu) seu corpo para consolidar a figura do ator moderno no Brasil. Fernanda Montenegro é o que outra professora, também muito querida, Tania Brandão, aponta como monumento, como “documento de carne”, um legítimo vestígio histórico de um tempo de reorganização profissional do ator no Brasil. A Fernanda Montenegro que foi parar na Academia Brasileira de Letras é a atriz e é isso que deve ser festejado.

É como atriz, de teatro, sobretudo, que Fernanda Montenegro se afirma e se projeta como intelectual, como personalidade de referência, merecedora de atenção e apreço no panorama cultural do país. Sobre a expansão do trabalho do ator no Brasil, Tania Brandão recupera nosso passado colonial e destaca, por exemplo, que, no século XVIII, quando começa a ser estruturado o mercado de arte na Europa, período marcado pela abertura das casas de ópera, a corte portuguesa aplicava sérias restrições à presença de mulheres nos teatros. A perseguição às atrizes, segundo conta, era o ápice de uma visão do teatro impregnada de preconceito, centrada na suposição de que o caráter da arte era nocivo para os bons costumes. 

Quando começa a trabalhar como atriz, na década de 40 do século XX, Fernanda Montenegro entra em cena ainda acompanhada de muitas contradições. Embora já regulamentada desde 1928, a profissão de atriz seguia envolta a senões entre nós. A Divisão de Censura de Diversões Públicas, criada por Getúlio Vargas em 1934 junto com o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, exigia que todos os “artistas” que trabalhassem à noite, fossem registrados na Polícia. Sim, na Polícia. Sobre aquele momento, Fernanda Montenegro, certa vez, declarou à revista “Época”: “Pertenço à geração de artistas que ainda tirou carteirinha de prostituta na Polícia. Naquela época, artista era prostituta, ‘viado’ ou gigolô”. A nossa mais nova imortal, pois, é esta mulher, é este ofício, é esta arte e todas as suas memórias. 

É impossível, assim, dissociar Fernanda Montenegro desse lugar da atuação, do trabalho como atriz. Artista da cena, suas contribuições, no entanto, têm peso decisivo na chamada cultura letrada. Sua performance como atriz sedimentou e avivou a escrita de grandes nomes da nossa literatura dramática. Logo no início de sua carreira, ainda integrante do Teatro Maria Della Costa, ela é destaque no elenco da primeira montagem de “A Moratória”, de Jorge Andrade. Já no Teatro dos Sete, Nelson Rodrigues vai escrever “O beijo no asfalto” especialmente para a companhia que ela liderou, por anos com o marido, Fernando Torres, e os amigos Sergio Britto e Ítalo Rossi, além do diretor Gianni Ratto. Sem assinar peças de punho próprio, Fernanda Montenegro deu vida a um sem fim de textos. Só tem a ganhar a Academia Brasileira de Letras com isso!  

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.