Bemdito

Dados num mundo pós-verdade #1: Opinião não é fato

No primeiro artigo da série, uma análise do que a ciência de dados revela sobre relacionamento, economia, ciência e bem-estar
POR Alisson Sellaro
Foto: Guillaume de Germain

Hoje começo uma série de artigos e gostaria de contar com você nesta jornada. O objetivo é olhar para vários aspectos da nossa sociedade através do que a ciência de dados nos diz. A ideia é fazer uma análise de modo mais leve, com uma linguagem simples, mas, principalmente, usando mais razão e menos fígado.

Vamos observar questões tão cotidianas quanto importantes. A série é um convite à reflexão em forma de uma conversa escrita. Hoje começamos com um conceito básico do que é uma análise objetiva. Vem comigo que o caminho é interessante.

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Você já percebeu que explicar como um determinado processo ocorre nem sempre é uma tarefa fácil? Mesmo algumas coisas comuns, que realizamos diariamente, são quase impossíveis de descrever em detalhes. Duvida? Explique o que você faz para andar alguns metros entre, por exemplo, a sala da sua casa e a porta da cozinha. Não estou interessado em uma descrição infantil, do tipo: me levanto e dou passos até chegar ao meu destino. O que quero saber é como você dá instruções ao seu corpo para que ele “se levante”. E, depois disso, como você comanda suas pernas para elas darem os passos necessários.

Eu poderia ir mais a fundo e pedir que você também me falasse como iria mandar o seu corpo corrigir possíveis desequilíbrios, mas suponho que já me fiz entender: analisar (para depois explicar) processos em detalhes é uma tarefa mais difícil do que pode parecer.

É verdade que nem sempre precisamos saber tão profundamente sobre determinadas coisas para usufruir dos benefícios que elas proporcionam. Você não precisa entender todas as nuances do funcionamento de um motor de combustão à gasolina, ou de microeletrônica, para dirigir um carro. Se eu questioná-lo sobre a complexidade desses assuntos, você provavelmente vai me achar um pouco louco e/ou desocupado, irá me ignorar sumariamente e seguir sua vida. Ações que me parecem muito razoáveis, aliás.

Afinal, você não é um especialista em mecânica ou eletrônica embarcada. Seus conhecimentos sobre essas áreas são, provavelmente, muito gerais. Talvez apenas o suficiente para fazer uso com um nível mínimo de competência destas tecnologias. A propósito, o termo “usuário”, popularizado com os computadores, vem daí. Uma pessoa que apenas usa uma tecnologia, sem necessariamente conhecer os detalhes do funcionamento.

Opiniões diferentes x fatos evidentes

Esse desconhecimento das entranhas – do carro, no caso – não tira a autonomia do usuário. Você pode ter, e provavelmente tem, suas preferências. Existem certos elementos em um carro que são mais importantes para você do que para outros, é claro. Talvez o fundamental para você seja a economia. Você prefere um carro um pouco menos potente, mas que consiga percorrer uma maior distância.

Eu, por outro lado, posso não dar a mínima para economia de combustível. O importante para mim, enquanto motorista, é velocidade. Quanto mais rápido, melhor. No mundo das opiniões, ambas as nossas preferências são válidas. Não existe um parâmetro que valide se a sua opção por economia é “correta”, enquanto a minha por velocidade é “errada” ou vice-versa. Ou seja, a opinião, assim como o proverbial papel, aguenta tudo.

Por outro lado, é possível que nós dois estabeleçamos uma referência para, sem trocadilhos, guiar nossas opiniões. Imagine que nós dois tenhamos preocupações com o meio ambiente. Após algum debate, estabelecemos, em comum acordo, que a quantidade de poluente emitido pelos carros será o nosso parâmetro. Para deixar a nossa análise mais robusta, determinamos que iremos medir as emissões dos dois carros em uma mesma pista de testes. Você entra no seu carro econômico, dirige pelo percurso. Eu faço o mesmo no meu carro rápido. Finalizada a medição, nós dois verificamos que o seu carro emitiu dez unidades de poluentes, enquanto o meu emitiu 12.

Nossa conversa para determinar o parâmetro de referência e o modo como o medimos foi muito importante. Ela nos tirou do modo vale-tudo das opiniões e nos trouxe para um mundo mais objetivo. Seguindo o nosso processo, percebemos que o seu carro tem um desempenho melhor que o meu. Aqui, começa a fazer sentido comparar resultados. Não é mais uma questão de opinião. Começamos a falar de fatos objetivos e específicos: seu carro emite duas unidades a menos de poluentes que o meu carro para percorrer um mesmo percurso. Como nós concordamos previamente com a referência que iríamos utilizar, não cabe qualquer questionamento à nossa conclusão. Ela é lógica e, no caso, a única possível.

Para resumir nossa conversa até aqui: existem coisas, situações e processos, que, mesmo sendo corriqueiros e familiares, não são fáceis de explicar em detalhes. Muitas vezes, temos um conhecimento superficial sobre esses processos. Sem referências objetivas (aquelas que podemos medir) e específicas (as que não deixam margem à dúvida e às interpretações), o que expressamos, portanto, são apenas opiniões. Embora essas opiniões sejam legítimas, elas não são comparáveis entre si. Não se pode dizer que uma opinião é melhor ou pior que outra. Elas são apenas diferentes.

Tudo isso é muito óbvio, você pode dizer. Será? Faço-lhe um convite: vamos separar opiniões e fatos nos próximos artigos, aplicando o mesmo método que discutimos aqui. Iremos ver que alguns processos sociais parecem óbvios. E que o óbvio é, quase sempre, um mistério.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.