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Quem é a sua referência?

Como o design calibrado para o homem branco, o chamado "homem de referência", afeta drasticamente mulheres e pessoas negras
POR Alisson Sellaro

Como o design calibrado para o homem branco, o chamado “homem de referência”, afeta drasticamente mulheres e pessoas negras

Alisson Sellaro
sellaro@sellaro.co

Quando eu era criança, a imagem mental que tinha de cientistas era a de homens de pele e jaleco brancos, que estudavam química, física ou matemática. Até hoje não sei por que apenas homens brancos. Também desconheço a razão para os jalecos em físicos ou matemáticos. Acontecia algo semelhante quando o tema era tecnologia. Eu pensava que o termo era sinônimo de computadores (e videogames, óbvio).

Com o tempo, foi ficando cada vez mais claro que o meu entendimento sobre estes assuntos – racismo e igualdade de gênero inclusos – era extremamente limitado. Alguém pode argumentar “tudo bem, você era criança”. Agradeço a gentileza, mas hoje quero contar que, três décadas depois, eu continuo descobrindo que há muito mais entre o céu e a terra que o meu conhecimento básico pode imaginar.

Dia desses, esbarrei com o livro Invisible Women (Mulheres Invisíveis, em português). A obra foi escrita pela pesquisadora e ativista inglesa Caroline Criado Perez. O livro ainda não foi lançado no Brasil, mas tem uma versão portuguesa editada pela Relógio D’água. Em resumo, a autora expõe uma série de circunstâncias em que o desenvolvimento tecnológico, mesmo para coisas básicas, ignorou completamente as particularidades de metade da população humana: as mulheres. O livro também explica que o que conhecemos por ciência e tecnologia é muito mais amplo do que pensamos.

Desculpem-me o trocadilho, mas ler o livro de Perez é como abrir a caixa de Pandora. Não que ela aborde temas obscuros, longe do nosso dia a dia, pelo contrário: ela fala de design e das tecnologias que usamos diariamente. Um exemplo que chama atenção é relacionado aos carros e às estatísticas de trânsito. Em relação aos homens, as mulheres têm uma probabilidade 47% maior de sofrer ferimentos graves em acidentes, mesmo quando usam cinto de segurança.

Uma das possíveis explicações vem de como os dispositivos de segurança dos veículos foram desenvolvidos, testados e produzidos. Os modelos utilizados durante as fases de pesquisa e desenvolvimento – que incluem a criação de um projeto e a elaboração de protótipos e ensaios – eram baseados, até bem pouco tempo atrás, no que os cientistas chamam de “humano de referência”: aqueles bonecos que você já deve ter visto em matérias jornalísticas, documentários e filmes. O problema é que o tal “humano de referência” não representa a diversidade da raça humana em relação ao gênero ou à raça. A “referência” é um homem branco, de 25 a 30 anos, que pesa cerca de 70 kg e tem uma altura de aproximadamente 1,70 m, com demais características de um caucasiano americano ou europeu.

Ao utilizar este conjunto de fatores como padrão, os projetistas, engenheiros e demais cientistas ignoram fatores importantes da anatomia feminina, para ficar apenas em um dos grupos excluídos: o desenvolvimento muscular diferente e a alteração na dinâmica de forças no cinto de segurança, causadas por seios e/ou gravidez, por exemplo. O que espanta no livro de Perez é que não estamos falando de um segmento da população tão pequeno que possa ser desprezado. Ao contrário, estamos falando de metade da humanidade!

Outro ponto incômodo no qual o livro toca é relacionado à saúde. Em geral, as mulheres morrem de problemas cardíacos com mais frequência que homens, embora o diagnóstico em homens seja feito mais comumente que em mulheres. Pesquisas médicas de 2019 apontam que mulheres têm o dobro de chance de desenvolver problemas com dispositivos cardíacos, como marca-passos.

Outro estudo, publicado no Journal of the American Medical Association em 2013, identificou que, na reposição de quadril, um procedimento relativamente comum para homens e mulheres idosos com desgastes nas articulações, as mulheres têm 29% mais chances de terem complicações pós-cirúrgicas em relação aos homens com mesmo perfil de saúde e de idade. Nesses casos, tudo indica que o problema por trás desses números desfavoráveis às mulheres, assim como no exemplo da segurança de carros, tem relação com a forma como os procedimentos e dispositivos foram projetados: focados em um modelo de humano que inclui apenas o tal “humano de referência”.

Mas, infelizmente, não são apenas as mulheres que pagam o proverbial pato. Mais recentemente, em 2020, no meio do caos em que a pandemia de Covid-19 nos jogou, pesquisadores da Universidade de Michigan publicaram uma análise no The New England Journal of Medicine, informando que os oxímetros – aqueles dispositivos para medir a oxigenação do sangue – exibem medidas incorretas para pacientes de pele negra. Geralmente, a medição em pessoas de pele escura, homens ou mulheres, mostra um nível de oxigenação maior do que o real.

O problema, com este erro, é que muitos hospitais utilizam o nível de oxigenação como um fator para determinar se o paciente será ou não atendido em uma emergência. Se considerarmos o contexto global de superlotação dos sistemas de saúde no mundo e o fato de que a Covid-19 é uma doença que ataca principalmente o sistema respiratório, temos uma situação em que os negros estão expostos a mais dificuldades no que diz respeito aos cuidados – em algumas vezes, uma situação de vida ou morte, literalmente. O que está por trás desse erro de muitos oxímetros? Exatamente o que você imagina a esta altura: o design destes dispositivos não considerou as diferenças entre tonalidades de peles, sendo calibrados para o “humano de referência”.

Esses exemplos têm uma raiz e uma solução comuns. Em processos de pesquisa e desenvolvimento, é fundamental entender o todo. Parte da comunidade científica vem discutindo e alterando protocolos para coletar dados desagregados. Em outras palavras, em vez de falarmos “humano de referência”, falaremos em observações relativas a indivíduos de diferentes gêneros e diferentes raças. Assim, estaremos em condições de desenvolver tecnologias mais inclusivas e úteis, sem gerar aberrações, como as que Caroline Criado Perez destaca em seu ótimo livro.

Terminar a leitura me fez pensar que talvez minha visão infantil sobre cientistas não estivesse tão errada assim. Nós, homens brancos, ainda observamos o mundo apenas da nossa própria perspectiva, excluindo da evolução tecnológica o que não se encaixa à nossa imagem e semelhança. Talvez a história fizesse mais sentido se, quando Arquimedes tivesse gritado eureca!, ele em seguida saísse nu pelas ruas de Siracusa, mas com um espelho na mão e a coroa do rei na cabeça.

Alisson Sellaro é gestor de tecnologia e cientista de dados.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.