Bemdito

Dados num mundo pós-verdade #3: Educação

Educação é algo mais amplo do que formar profissionais qualificados; Brasil avançou desde a redemocratização, mas ainda há muito o que fazer
POR Alisson Sellaro

Este é o terceiro artigo da série Dados num mundo pós-verdade. Começamos nossa conversa falando sobre a diferença entre opinião e fato. No segundo texto, o assunto girou em torno da Constituição Federal de 1988 (CF). Naquela ocasião mostramos por que faz sentido usar o texto constitucional como nossa referência para as nossas análises objetivas.

É sempre bom lembrar que o olhar sobre a Constituição não é o de um especialista em Direito Constitucional. Os demais artigos desta série, incluindo este que você lê agora, baseiam-se na Constituição para analisar objetivamente dados sobre a nossa sociedade.

Hoje o tema é educação. Um assunto tão amplo quanto importante. Palavra fácil na boca de políticos de todas as cores ideológicas, principalmente durante as campanhas eleitorais.

Mas o que diz exatamente a Constituição sobre talvez o assunto mais importante para a evolução do Brasil no longo prazo? Quais são os parâmetros objetivos que podemos utilizar para enxergar o caminho percorrido nos aspectos educacionais do Brasil desde a redemocratização?

Te convido a pegar uma xícara de café e nos acompanhar na conversa. Se ainda não leu os dois artigos que iniciam esta série, comece por lá que te espero por aqui. Caso já os tenha lido, vamos lá!

Começando do início: o que é educação mesmo?

Soa prepotente começar uma conversa debulhando um rosário de definições. Sendo assim, peço licença para definir apenas um termo. Educação é uma daquelas palavras que, de tão fundamentais e usadas, são difíceis de serem definidas. Todos sabemos o que ela é, mas nem sempre é fácil articular, de forma simples, o seu significado.

Por sorte, a CF traz essa definição: é a aplicação de métodos com o objetivo de “promover o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Além da definição, a CF também explica que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família”.

Além da definição propriamente dita, existem ainda nove princípios que devem orientar todas as políticas públicas voltadas à educação. Em resumo, deve haver igualdade de condições no acesso à escola, liberdade quanto ao pensamento, artes e o conhecimento, com valorização dos profissionais da educação e também das múltiplas visões que formam a sociedade brasileira.

Há muita coisa interessante nesta definição e nos princípios, como, por exemplo, que a educação não deve ter como único objetivo formar profissionais. Afinal de contas, pleno desenvolvimento e preparo para a cidadania não são atingidos através apenas de “ensinar para os jovens a leitura, a escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda”, como disse o presidente. Esta é uma visão limitada e, principalmente, fora do que estabelece “as quatro linhas da Constituição”.

Outro ponto de destaque é que este direito não é de um grupo apenas – os que têm acesso ao sistema privado de ensino. É de todos os brasileiros. Sendo dever do Estado proporcionar as condições necessárias.

Grandes questões e seus indicadores

A Constituição dedica onze artigos à educação. Mas é possível resumi-los em quatro grandes questões: qual o alcance esperado das atividades educacionais; que qualidade queremos para a nossa educação; quem é responsável pelo provimento dos serviços educacionais; e, finalmente, como pagaremos por ela.

Para analisar cada uma dessas perguntas, precisamos definir quais parâmetros iremos utilizar. Em alguns casos, a própria Constituição estabelece estes indicadores, como é o caso, por exemplo, das fatias do orçamento obrigatórias para o financiamento da educação.

Em outros, é necessário construir métricas, alinhadas à definição e aos princípios determinados pela CF, para medir como estamos em relação a uma dessas quatro grandes questões.

Por exemplo: para analisar o alcance da educação, podemos medir o índice de analfabetismo da população em uma certa idade. Embora a taxa de analfabetismo sozinha não indique a totalidade do nível de educação, utilizamos o indicador como uma representação dessa dimensão. Como curiosidade, em ciência de dados, o nome técnico para esta abordagem de usar um indicador como representante de um conceito mais amplo é chamado de proxying.

Neste artigo, vamos olhar para as duas primeiras das quatro grandes perguntas: abrangência e qualidade. Para não deixar o texto muito longo (e chato), falaremos das duas últimas no próximo artigo da série.

Alfabetização e o alcance da educação

No período que vai entre 1992 – último ano do governo Collor – a 2018, último ano do governo Temer, a proporção de jovens de 15 anos ou mais que não sabem ler reduziu pela metade no Brasil. Veja no gráfico:

O analfabetismo vem caindo por quase todos os anos deste período, salvo apenas três exceções, entre 1996-1997, 2007-2008 e 2011-2012.

Mas a velocidade com que isso ocorre difere ano a ano. A maior redução entre dois anos consecutivos ocorreu entre 2010 e 2011 (segundo mandato do governo Lula), quando o indicador caiu 1,1 ponto percentual. Já as menores reduções, ano após ano, aconteceram entre 2017 e 2018, durante o governo Temer.

Se olharmos a redução do analfabetismo em cada um dos governos federais deste período, temos basicamente um empate técnico entre o desempenho do governo Fernando Henrique Cardoso e Lula, ambos considerando os dois mandatos de cada presidente, com uma leve vantagem ao governo Lula. O governo Itamar Franco entregou o pior resultado neste aspecto.

Uma ressalva: considerando que a presidenta Dilma foi impedida antes da conclusão do primeiro ano de seu segundo mandato, os resultados de 2015 foram considerados como sendo parte do governo Temer.

Qualidade da educação

A maior fonte de dados internacionais que permite a comparação da qualidade educacional entre países é o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes, conhecido pela sigla PISA, promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No PISA, alunos do final do Ensino Fundamental (15 anos), são avaliados a partir de instrumentos padronizados com base em um currículo mínimo esperado para a formação básica.

Fazer parte do sistema educacional é apenas a primeira etapa do processo. Estando inserido, é preciso que as pessoas que estejam estudando efetivamente aprendam. O teste do PISA proporciona uma visão geral de como essa aprendizagem está acontecendo e permite contrastar o desempenho de um país com outros. Na última edição do teste, em 2018, 10.691 alunos de 638 escolas no Brasil realizaram o teste.

Os resultados do PISA são dados numa escala numérica onde números maiores representam um melhor desempenho. Sem entrar em questões mais técnicas de estatística, podemos dizer, a grosso modo, que as notas vão de zero a 800.

O gráfico abaixo mostra o desempenho do Brasil em leitura (verde), matemática (azul) e ciências (laranja). Os países são listados em ordem crescente de desempenho em leitura. Quanto mais à esquerda no gráfico, pior o resultado de leitura.

Pelo gráfico, vemos que o Brasil está praticamente empatado com a Colômbia e Malásia em leitura. Além disso, estamos abaixo nos três critérios da América Latina (Média da Latam no gráfico) e consideravelmente abaixo da dos países da OCDE também em todos os aspectos.

Enquanto o teste do PISA nos dá uma perspectiva externa, do ponto de vista interno, a principal fonte de dados sobre educação no Brasil é o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). As avaliações que alimentam o Saeb, assim como as utilizadas no teste do PISA, são padronizadas. Isso permite que os dados possam ser comparados corretamente. As avaliações ocorrem no 2º, 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e na última série do Ensino Médio.


A partir de 2007, o Saeb passou também a fornecer informações para o cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O Ideb estabelece uma nota (de zero a dez) para cada etapa escolar e é o principal indicador para decisões da Política Nacional de Educação (PNE).

O gráfico abaixo mostra o desempenho dos alunos em relação ao aprendizado esperado em três momentos da vida escolar. A barra azul clara mostra o desempenho durante o último ano do Ensino Fundamental 1 (do 1º ao 5º ano). A barra azul escura mostra a mesma informação para o Ensino Fundamental 2 (do 6º ao 9º ano).

Já a barra verde exibe os dados esperados para o Ensino Médio. Assim, por exemplo, pouco mais da metade dos alunos aprende o esperado em matemática no fim do Ensino Fundamental 1 (fim do 5º ano).

Os alunos concluem a primeira parte do Ensino Fundamental com cerca de 50% do conhecimento necessário em matemática, um percentual já baixo. Esse conhecimento cai para cerca de 10% no final do Ensino Médio. O mesmo fenômeno acontece em língua portuguesa, embora em menor escala.

Sobre cobertura e qualidade

Temos feito progressos importantes na escolarização e redução do analfabetismo. Embora tenhamos tido alguma melhora na qualidade do ensino, ainda estamos longe de outros países, tanto os da América Latina, quanto de outros grupos como os demais países dos BRICS ou de membros da OCDE.

Olhando para o que queremos como sociedade na educação, há ainda muito a progredir. Precisamos de mais qualidade nos resultados das políticas públicas. Para formar gente preparada para o exercício da cidadania, gente de bem de verdade, e não uma caricatura hipócrita do falso patriota, chulo e raso, é preciso muito mais do que apenas ensinar a ler e fazer contas. E isso, ainda bem, não é questão de opinião. É fato constitucional.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.