Bemdito

Manifesto da “Desprodutividade”

Para pegar leve, comece encontrando um jeito econômico e saudável de fugir das perturbações
POR Cláudio Sena

Cultive sossegado o seu fermento. Bata sua massa tranquilamente. Ninguém vai te julgar. São tempos duríssimos, sobretudo no Brasil. No entanto, mais toleráveis aos novos hábitos. Entre a pauta política odiosa, a doença ameaçadora e o trabalho excessivo, procure seus métodos de descompressão, por tédio ou indicação médica.

Afaste-se do sofá e, se for o caso, o sofá. Na sala de casa. Faça sua prática de yoga, seu exercício abdominal, seu Tai Chi Chuan. Não tem sala? Faz no banheiro, na praça ou na sala de embarque. Dá-se um jeito. Vale tudo. Quem somos nós para julgar? Ainda mais mantendo distanciamento e estando mascarados. Poste, não poste, eu sei lá. Veja aí o que é melhor para você.

É a época perfeita para ser exótico e empurrar as preocupações em um buraco de vários metros de profundidade, depois jogar uma tapete persa, dos grossos e caros, ou uma laje baratinha por cima, no mínimo por alguns minutos. Faça a sua máscara facial e nos mostre o resultado. Sem filtro do Instagram, por favor. Precisamos saber se funciona e, na próxima visita à farmácia, entre remédios e testes de Covid, quem sabe compramos também o nosso revigorante removedor de impurezas da cútis, de maneira a exibi-las no resto de rosto que nos sobra. 

Desprodutive-se. Faça nada. Ou concentre cada neurônio no esforço de medir a  umidade e a intensidade de luz para as plantinhas. Não faltam equipamentos para tais cuidados. Sem falar dos nossos animais domésticos. Para eles, brincadeiras, para nós, um universo de ocupações e trabalho, uns prazeiros e outros nem tanto,  uma de mais-valia consciente e consentida. Pelo menos, assim, nos afastamos um pouco das manchetes tenebrosas do jornal televisivo e do ranço momentâneo das telas. 

Porém, cuidado! Tente deixar seus cabelos no lugar, mesmo na perseguição desse prazer frívolo e passageiro. É bom ficarmos atentos para que a válvula que seria de escape não venha a tornar-se de escalpe (momento merchan: esta está no meu modesto livrinho Agora Voa). Na busca por esse dispositivo que, para alguns, mais parece um cano de uma barragem, cuidado para não se perder entre o skate e a aula de cerâmica, investindo em recursos químicos.

Até os golfinhos espertalhões, no intuito de sair da rotina, entraram numas de mastigar baiacus para ficar chapados. O peixinho solta uma tal de tetrodotoxina que faz o mamífero entrar numa viagem maior que o oceano. Não vão por aí, deixa isso para os animais mais espertos que os humanos.

Tem outra. Cuidado para não exagerar na dose até fazer do hobby uma compulsão. Não vai ter psicólogo, psiquiatra e dinheiro para pagar estes especialistas para todo mundo. Até o atleta olímpico, no auge das tensões de uma disputa mundial, achou uma maneira de regular a ansiedade por meio do crochê. Sendo assim, você tem capacidade, sim, de encontrar seu jeito econômico e saudável de empreender uma fuga das perturbações. 

Nem tudo precisa enaltecer, nem sempre tem de ter um porquê. Só vai, escapa e deixa uma parte dessas engrenagens do mundo, mais para máquinas de moer gente, de lado um pouquinho. A propósito e, por fim, é preciso deixar registrado: ficar parado, respirar e dormir não deixam de ser atividades. Agora ficou mais fácil.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.