Mistério do processo de Pilatos e de Jesus #1
Uma releitura filosófica sobre o drama da Paixão de Cristo no primeiro ensaio da série sobre hermenêutica secular
Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
Em O que é um mistério? (2010), o filósofo italiano Giorgio Agamben ensaia uma resposta à pergunta dada no título dessa conferência. Ele lembra que há um significado tardio para essa palavra de origem grega, mystērion. Segundo o filósofo cita, falando sobre os movimentos litúrgicos da Igreja, o “obscuro monge” Odo Casel estabelece que mistério tem um sentido iniciático de um conjunto de segredos proibidos de serem revelados a quem não era iniciado nos mistérios pagãos antigos, como nos mistérios órficos, por exemplo. E, por isto, “[n]a origem, o termo ‘mistério’ designa para Casel uma práxis, uma ação, um drama, dromēna, como se diz em grego, isto é, gestos e atos pelos quais uma ação divina se mostra e se realiza no mundo para a salvação do homem que participa de tal mistério”, diz Agamben.
Com isso, Casel entendia que a Igreja não poderia ser reduzida a uma comunidade de crentes, com sua doutrina dogmática. Em verdade, “a Igreja se define muito mais pela participação do mistério, isto é, numa ação litúrgica de culto”, explica Agamben. Sobre essas teses, o que me interessa nestes ensaios é o modo como o mistério é encarado como um conjunto de ações dramáticas, e também o modo como Agamben diz haver, em seguida, uma ligação entre os mistérios e os romances porque “é nos mistérios, como nos romances, que vemos pela primeira vez uma existência individual se ligar a um elemento divino, ou sobre-humano, de tal modo que as sortes e os episódios de uma vida singular adquirem uma significação que os ultrapassa e tornam-se nesse sentido misteriosos”, segundo o filósofo.
Assim, partindo dessas noções de mistério, proponho, aqui, uma leitura da Paixão de Cristo, enquanto sendo uma narrativa dramática, um romance trágico de captura, entrega, inquirição, tortura, veredito, morte e ressurreição, que conecta personagens humanos e divinos. Para isto, farei uma série de dois ensaios de hermenêutica secular, sendo que, neste primeiro, irei me delimitar à interpretação do personagem de Pôncio Pilatos, dentro da trama do processo misterioso, do romance dramático, no sentido mesmo sugerido por Agamben a partir de Casel. Logo, alerto: não pretendo oferecer uma hermenêutica teológica apologética, liberando-me, assim, do risco de causar escândalo por meio de uma leitura herética. Pois o caso aqui é de propor uma leitura literário-secular, teológico-jurídica e política.
Como se sabe, a Judeia era um lugar conflituoso, onde se tentava apaziguar os ânimos políticos. Por meio da tentativa de convivência possível entre o poder imperial (imperium) pagão dos romanos e as autoridades da cidade-estado da Judeia, Pilatos não teve uma interpretação pacificada sobre seu papel na divina tragédia sacrificial do messias cristão, de morte e ressurreição. E apesar de se saber que não se pode ler os evangelhos como documentos desprendidos de pretensões apologéticas, como se fossem descrições pretensamente históricas, do modo como entendemos a história, ao menos, no seu Sobre o processo de Jesus (1974), Paul Winter diz que “o historiador deve se ocupar antes de mais nada desses documentos”.
Fora dos evangelhos, a controvérsia em torno da importância de Pilatos para a narrativa da Paixão de Cristo pode, então, já ter um indício contemporaneamente encontrado no fato de que, na Oração do Credo da Igreja Católica Romana, o governador, a quem Jesus padeceu sob, é o único pagão mencionado, dentre todos aqueles citados como sendo objeto de crença. E em relação aos relatos fora do Novo Testamento, encontra-se descrições sobre quem teria sido essa figura histórica no drama da Paixão. Segundo Winter, “(…) o testemunho de Filo[n] [de Alexandria] acerca do caráter de Pilatos é o mais confiável dentre os que chegaram ao nosso conhecimento”, e ele “retrata Pilatos como um homem de caráter inflexível, rude e obstinado”.
Mas é nos evangelhos que o suposto caráter de Pilatos parece ser mais bem explicitado. O problema é que, entre as diferenças narrativas sobre a entrega de Jesus – se foi feita pela guarda judaica ou se pelos próprios romanos –, a postura afetiva de Pilatos também é divergente entre os próprios evangelistas. Segundo Winter, “[o] severo Pilatos vai aos poucos ficando mais brando, de um evangelho para outro”. A hipótese de Winter, que explicaria esta mudança gradual na visão sobre Pilatos pelos cristãos, dá-se porque “[h]á suficientes evidências fora dos evangelhos do recurso ao realce de favores ou da benevolência de administradores romanos pelas comunidades cristãs do passado – como forma de obter a tolerância religiosa no presente”, afirma Winter.
Em Marcos, Pilatos questiona à multidão: “Mas que mal fez?” (Mc 15:14); em Mateus, Pilatos faz pergunta semelhante (Mt 27:23) e, depois, um famoso gesto: “lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue do justo” (Mt 27: 24); em Lucas, Pilatos teria dito após interrogar Jesus: “Não acho culpa alguma neste homem”, para que, então, ao saber que se tratava de um galileu, remeta-o a Herodes, já que era de sua jurisdição (Lc 23:7), e então só depois reenviar Jesus a Pilatos, momento em que afirma, mais uma vez, sua inocência, “nenhuma culpa, das que o acusais, acho neste homem” (Lc 23:14), chegando a fazer a mesma questão presente nos evangelhos citados, encerrando sua fala, afirmando pela terceira vez a inocência de Jesus: “Não acho nele culpa alguma” (Lc 23:22).
Dessas passagens acerca do processo de Jesus e dos atos jurídicos de Pilatos, quero propor sete hipóteses interpretativas sobre o que chamo de análogo oposto, na narrativa da Paixão. Lembrando que não tenho pretensão de oferecer necessariamente qualquer leitura original. Meu objetivo é muito mais o de tentar ler tais hipóteses de modo original, desenvolvido a com e a partir da noção de mistério por Agamben:
1) Em Lucas, Pilatos se mostra quase como um reflexo análogo oposto de Pedro, quem, em vez de negar (Mc 14: 66-71; Lc 22:54-61; Jo 18: 15-18), afirma Cristo por três vezes (Lc 23: 7-22), ainda que não e trate afirmar que o segue, mas sim afirmar sua inocência;
2) A analogia oposta entre os atos de se lavar: se por um lado, Jesus lava pés na Quinta-feira santa (Jo 13:1-17), como ato de humildade para com quem o servia, num exercício dialético, sendo senhor e servo, por outro, Pilatos leva suas próprias mãos, livrando-se da decisão sobre a condenação de Cristo, uma vez que não via culpa naquele homem, e ao mesmo tempo que não poderia contrariar os ânimos da multidão;
3) Jesus cometeria, em analogia oposta, dois crimes, ao mesmo tempo, contra duas divindades: por um lado, blasfêmia contra o deus dos judeus, e, por outro lado, o crime de lesa-majestade contra a divindade de César;
4) A competência para o julgamento de Cristo: em que o sindério judaico seria o análogo oposto do tribuno pagão, pela figura de Pilatos;
5) Da passagem em que Pilatos teria perguntado a Jesus: “Que é a verdade?” (Jo 18:38), tem-se, então, Pilatos em tom provocativo, irônico, na tentativa de dialogar com Jesus, ou apenas, sarcasticamente, mostrar o non sense de se falar da Verdade. Representando, deste modo, o legado do viés retórico da cultura romana, cuja verdade resta a ser mais precária, verossimilhante, Pilatos coloca a dúvida retórica em analogia oposta à Verdade apresentada por Cristo, que está unida à vida, ao caminho que se é; Verdade enquanto união de gestos e palavras, em performance fundada na realidade de uma forma-de-vida.
6) Jesus seria um análogo oposto de Barrabás, quem, em vez de justo e perfeito, é um salteador, que, com sua vida em bando, poderia ser o segundo pilar, ao lado de Jesus – lembrando, então, os pilares de entrada do templo de Salomão, os quais fazem referências a outra analogia oposta: a entre os nomes místicos, Jaquim e Boaz (1 Reis 7);
7) E, por fim, como o mistério do processo de Jesus é um e ao mesmo tempo dois. Pois do mesmo modo que Jesus “padece sob Pôncio Pilatos”, também o governador romano da região da Judeia está sob um processo por Cristo.
Como diz Agamben, em Pilatos e Jesus (2013), o mistério do processo de Jesus, presidido por Pilatos, incorreria na sua “angustiada hesitação”; mostrando como “Juízo e salvação permanecem até o fim estranhos e incomunicáveis”; e como este encontro entre “o vicário de Cézar e Jesus” inviabilizaria tanto “uma teologia política cristã e uma justificativa teológica do poder profano”, quanto uma mútua “inscrição da ordem jurídica na ordem da salvação”, condenando-nos, assim, a uma crise (krisis) sem fim.
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.