Qual o sabor da sua cidade?
Creme de galinha, baião de dois e paçoca (a cearense, de carne de sol e farinha) são algumas das comidas que sinto falta quando me lembro dos pratinhos da Gentilândia, em Fortaleza. Barato e gostoso, era o pratinho que forrava meu estômago entre as aulas na Casa de Cultura Francesa no final de tarde e o início das aulas na Faculdade de Direito à noite. Não ficava necessariamente no caminho, mas o desvio de rota valia cada metro percorrido.
Mate com limão bem gelado é o que me salva da desidratação nas praias do Rio de Janeiro. Além de deixar você escolher se prefere uma concentração maior ou menor de limão ou mate, os vendedores tornam possível suportar o calor intenso provocado pelo sol, pela temperatura e pelos corpos cariocas.
Subir a Ladeira da Misericórdia dançando ao som do frevo do “Eu acho é pouco” é uma tarefa que requer energia e animação que apenas o carnaval e as tapiocas do Alto da Sé proporcionam. Depois descer para comer um pratinho de macaxeira com charque, descansando nas sombras das pitombeiras. Ou então dar um reforço pro estômago com caldinho de sururu ou de feijão entre uma cerveja e outra na Rua da Moeda, no Recife. E quem esteve em Salvador e, pelo menos, não experimentou um acarajé de uma baiana na rua?!
Se passou por São Paulo sem comer um pastel em alguma feira de rua, alguma coisa não está certa. Também não sei viver São Paulo sem as bancas de frutas em ruas e praças, que já me salvaram algumas vezes quando estava faminto e correndo de um compromisso para outro.
Por isso, da mesma forma que as músicas marcam nossa experiência nas cidades, como contamos na introdução à playlist Bemditas Cidades #1, as comidas também são parte intrínseca da vida urbana. Se o marketing urbano com a moda de food trucks tentou fagocitar essa dimensão urbana, a comida de rua tradicional continua tendo um lugar de destaque no exercício cotidiano do direito à cidade.
Comida e espaço público
Poder obter alimentos em pleno espaço público das cidades é essencial para a manutenção de diversas dinâmicas econômicas, sociais e culturais. Do nosso cotidiano de trabalho ao passeio com os filhos em um dia de sol, contamos – muitas vezes até inconscientemente – com essa disponibilidade de alimentos nas cidades. Quantas vezes você foi às compras no centro de sua cidade e levou água ou um lanche na sua mochila? Mesmo quem tem esse hábito, nunca esqueceu alguma vez de levar e precisou comprar de um vendedor ambulante?
Infelizmente, nem todas as gestões públicas possuem a devida compreensão sobre essa dimensão da vida urbana, tentando por ocasiões coibir o uso de espaços públicos por vendedores ambulantes. Sob o argumento do seu dever de zelar por estes espaços, buscam impor uma ordem que é excludente e contraria o próprio interesse público.
Se realmente cabe ao poder público evitar que o espaço público seja privatizado, a questão não é o uso temporário que pequenos comerciantes ambulantes fazem ocasionalmente de calçadas e praças, mas sim a exploração destes espaços para obtenção de lucro por grandes grupos empresariais (cujos beneficiários serão poucos e já atualmente milionários ou até mesmo bilionários).
Enquanto a sobrevivência desses ambulantes depende da difícil obtenção de licenças extremamente burocráticas e, em muitos casos, desnecessárias, há casamentos que conseguem facilmente fechar ruas de bairro nobre, como documentado em 2015 em Fortaleza.
Ocupar as cidades com celebrações também é parte do direito à cidade, evidentemente, mas fica patente a desigualdade quando comparamos a facilidade com que se obtém permissão para isso. Para que o sabor de nossa vivência na cidade seja doce, precisamos questionar essa lógica desigual e excludente que rege o uso dos espaços públicos hoje. O direito à cidade deve ser o prato principal servido em nossos espaços públicos.