Bemdito

Uma amizade com o Professor Polvo

Documentário indicado ao Oscar mostra que outra relação com a natureza é possível
POR Leonardo Araújo

Documentário indicado ao Oscar mostra que outra relação com a natureza é possível

Leonardo Araújo
araujovleonardo@gmail.com

Indicado ao Oscar 2021 de melhor documentário, Professor Polvo (2020), disponível na Netflix, conta a história da improvável amizade entre o cineasta sul-africano Craig Foster, diretor do filme, e a espécie animal que dá nome à obra.

Tendo passado a infância a poucos metros das águas tormentosas do Atlântico, no interior das quais se abrigavam extensas florestas de algas e uma fauna extraordinariamente diversa, Craig aos poucos vai se distanciando do contato com a natureza que o cercava, sufocado pelo trabalho e pelas obrigações da vida adulta.

Entre a infância e o momento da crise, uma experiência vivida na Reserva Central Kalahari retorna à memória, servindo como um chamado a recuperar a conexão interrompida. Na ocasião, Craig teve a chance de observar de perto a rede de interações que ligavam os mestres rastreadores e a paisagem por onde transitavam, cujos sinais só eles eram capazes de “ler” em razão da misteriosa comunicação com a natureza.

Decidido a reviver a experiência da infância e inspirado pelo que vira, o diretor resolve então partir em uma busca cujos “achados” vão lhe surpreendendo cada vez mais. Passa a mergulhar regularmente em uma região próxima à floresta marinha, levando consigo o equipamento que pouco antes lhe fazia lembrar de prazos e obrigações. Em uma de suas idas ao mar, encontra um polvo e, ao longo de um ano, estabelece com ele uma interação diferente de tudo o que vivera até ali.

Sem usar roupas de mergulho ou tanque de oxigênio, Craig vai produzindo dobras nos limites que os separam, para dar vida a um espaço de continuidade entre humano e animal. Se o mergulhador, por um lado, precisa aprender a pensar como um polvo a fim de rastrear seu paradeiro, depois de tê-lo acidentalmente afugentado; o polvo, por outro, começa a interagir com o corpo do homem de maneiras cada vez mais complexas, a ponto de tornar Craig auxiliar involuntário de suas caçadas.

A “conversa” entre os dois se dá por meio do desenvolvimento de uma “empatia cinética”, conceito citado por Marion Magelsdorf (2012), para sublinhar o poder e a sutileza expressiva do corpo na constituição de uma comunicação interespécies. E é essa linguagem nascida durante os encontros – nem humana nem animal, mas uma terceira, “humananimal”, como diz Magelsdorf – que permite articular a relação de proximidade dos dois que, nesse ponto da história, já se querem, se assim é possível dizer, como bons amigos.

Mais do que isso. Ao acompanhar o desenrolar de sua curta vida – a fuga dos predadores, a busca pelo alimento, os inusitados momentos de brincadeira, a exuberante potência da vida a cada vez renovada pela aparição contínua da morte – Craig se dá conta das conexões que o ligam ao mundo e às agências humanas e não-humanas que o povoam.

Conduzido pelo amigo e professor ao ponto onde passado e presente se enlaçam, Craig vislumbra a própria finitude. Paradoxalmente, é desse lugar que lhe vem ainda uma última lição: a de que seguirá, ainda quando a vida já lhe tiver abandonado o corpo, para sempre emaranhado à teia de conexões vitais reveladas pelo polvo.

Leonardo Araújo é psicanalista e pesquisador em antropologia/sociologia. Está no Instagram.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.