Bemdito

Uma carta para Virginia

Nos oitenta anos da morte de Virginia Woolf, uma carta sobre o prazer de caminhar, a cumplicidade literária e o desafio do recolhimento
POR Nara Vidal

Nos oitenta anos da morte de Virginia Woolf, uma carta sobre o prazer de caminhar, a cumplicidade literária e o desafio do recolhimento

Nara Vidal
nara.vidal@hotmail.co.uk

Londres, 28 de março de 2021.

Virginia,

já faz algum tempo que carrego suas linhas como mapas de Londres. No entanto, essa posse não foi imediata, simples ou muito menos coincidente com a minha chegada à sua cidade. Quando eu cá pisei era obcecada por Shakespeare. Confesso que ainda penso nele quase todos os dias, mas antes, não havia espaço para muito mais e por isso, demorei até me familiarizar com os seus livros. Ainda assim, você talvez ficasse satisfeita em saber que mergulhei de tal forma na sua escrita que a traduzo como passatempo. Não nos enganemos: passatempo nem sempre se refere a algo executado com desenvoltura. Traduzir para o português o que você deixou dá imensíssimo trabalho. Também passei a dar aulas sobre você. Um dos cursos foi exatamente sobre sua relação com Londres. Não me faltou material! Sua fixação pela cidade está segura comigo, já que tenho essa mesma sensação de estar viva como em nenhum outro lugar quando passeio a pé pela cidade. Andar no táxi preto também me faz sentir viva. Sei que você chegou a conhecê-lo. 

Hoje, penso em você com a mesma frequência com que penso em Shakespeare. Veja que coincidência que eu também vim parar aqui, fora de Londres, na linda área rural do país, a pouco mais de meia hora da sua chácara, Monk House. Não faz muito tempo, fiquei com os olhos fixos nas águas do rio Ouse pensando em você.  Imersa nessa reflexão, queria que você soubesse que Mrs Dalloway está, neste momento, inútil. Que tristeza olhar suas rotas e não poder usá-las. Quando vejo Clarissa flanando pela cidade naquele dia em junho, sinto uma saudade insuportável das ruas da nossa cidade. Virginia, não se anda mais por Londres. Pelo menos por enquanto, não é possível comprar flores e nem mesmo fazer hora de olho nas badaladas do Big Ben que, aliás, está todo reformado com as cores originais do período vitoriano que você tanto detestou. Devo confessar que gosto muito do título que teria Mrs Dalloway: As Horas.  Gosto porque, de novo, me conforta ver esse seu fervor por espaços e monumentos da cidade tão comuns e que se destacam como únicos nas suas histórias. Durante o romance, você marca o dia de Clarissa, que mora em Westminster, pelas badaladas do Big Ben, como se o relógio significasse uma unidade entre todas as personagens e todas as pessoas da cidade. É uma interseção entre as classes, os gêneros. A cada badalada, que é ouvida por cada um, independente de quem seja, a interseção é estabelecida através da continuidade, ordem e disciplina do tempo que é igual para todos. Como se fosse um ponto democrático entre as personagens e habitantes da nossa cidade. 

Tão menos falado, o seu O quarto de Jacob, tão genial, Virginia! Londres do alto, portanto, detalhes nos escapam, assim como nos escapam as definições sobre a própria personagem e a história dela. Não é possível, lá do alto, ver detalhadamente o território, mas é possível sugerir um todo, uma paisagem e você exige do leitor a sua própria contribuição. É absolutamente genial.

Queria falar de novo das aulas que dei sobre você e suas personagens andando por Londres. Isso aconteceu quando estávamos isolados em casa, não por escolha, mas pelo vírus que se espalhou pelo mundo inteiro. Você não acreditaria que o mundo encolheu de tal forma que o que acontece na Amazônia, tão equivocadamente descrita por você, de maneira tão estereotipada em A Viagem, acontece da mesma forma em Bloomsbury. Não é exagero: o mundo virou uma ostra e estamos em casa, as mãos segurando Cenas Londrinas, esperando pelo sinal verde para escaparmos e ocuparmos a vida de novo. 

O roteiro da minha aula passava por muitas das suas referências. Falava da sua paixão por caminhar por Londres, mas secretamente eu falava da minha também. Virginia, eu sei o que você sentiu quando saiu de Bloomsbury para Richmond e depois para o interior. Não há vida fora de Londres como aquela que se sente lá. Concordo com você. Por isso, a gente vai morrendo um pouquinho quando não pode passear por Embankment, Fleet Street, Gordon Square, Soho, Picaddilly, Oxford Street, West End

Aliás, falando do seu mundo, uma das suas cartas teve grande impacto em mim. Você se lembra que escreveu sobre Leonard Woolf para a sua amiga Violet Dickinson? Você falava sobre a intimidade que é caminhar por Londres lado a lado com ele e que chegavam à equivalência de fazer amor enquanto contornavam praças no centro, tamanha a cumplicidade daquele exercício, o exercício de caminhar. Virginia, eu venho caminhando dentro de uma floresta e não aguento mais. É pela capital que quero andar de novo. Você escreveu uma vez sobre o infinito que habita em Londres, que a cidade tem seus mapas, mas nossas paixões são imprevisíveis. O que alguém pode encontrar nas esquinas de Londres não está em mapa algum, mesmo quando se conhece a sua geografia. 

Este momento é um hiato entre o que você escreveu e o quanto eu vou aproveitar as ruas de Londres tão logo seja possível caminhar por elas novamente.  Eu pretendo traçar meu próprio mapa para voltar a reconhecer seus textos nessas esquinas surpreendentes da cidade. Estar lá, presa naquela geografia, você sabe, nos faz livres.  

Enquanto eu escrevia este texto, estava às voltas com a memória da morte da minha mãe. Este texto, Virginia, homenageia a sua própria morte. É um cruzamento, como o de Ducannon Street e The Strand com aquele campo vasto da igreja de St. Martins a ser ocupado. É a minha mãe que me deixa a vida e é você que me deixa Londres, o que chego a acreditar, seja praticamente a mesma coisa. 

Yours truly,

Nara

Nara Vidal é escritora, tradutora, professora e editora.

Nara Vidal

Escritora, tradutora, professora e editora.