O tempo e o crime: reflexões sobre o Caso Evandro #1
Albert Einstein elaborou uma teoria para explicar que existem grandezas relativas: a determinação depende do referencial a partir do qual está sendo medida. Uma dessas grandezas, o tempo, seria portanto relativo: depende de quem o percebe e de onde esse sujeito se encontra. Por analogia, e com a licença poética devida, é possível imaginar que o tempo passado na prisão, por exemplo, é percebido de forma diferente do tempo que se passa vivendo em liberdade.
A metáfora da relatividade na percepção do tempo também pode ser vista nos processos de criminalização observados socialmente, que decorrem em descompasso: o tempo da investigação policial difere do tempo que se leva para obter uma condenação penal transitada em julgada, que, por sua vez, difere frontalmente do tempo que jornais e telejornais levam para utilizar de forma contundente e definitiva as palavras “criminoso” ou “culpado”.
Quem se encontra no meio dessa temporalidade tão ambígua vê sua subjetividade ser transformada em estereótipo e colocada a serviço de narrativas e especulações, seja como vítima, agressor(a) ou culpado(a), muito antes até de enfrentar o sistema de justiça.
Mas o tempo também pode ser aliado e moldado na hora de se contar uma história e, se possível, reparar a História. Esse é o exemplo da responsabilidade enfrentada pelo professor e jornalista Ivan Mizanzuk, que desde 2015 se dedica a explorar a história que ficou conhecida a partir de 1992 como As bruxas de Guaratuba.
O caso do desaparecimento e da morte cruel do menino Evandro Ramos Caetano, de sete anos, na pequena cidade de Guaratuba, no litoral do Paraná, e a acusação de 7 pessoas, entre elas a filha e a mulher do prefeito, e um pai de santo, repercutiram nacionalmente. O caso ficou conhecido como “magia negra” e “satanismo”, e a morte do menino teria sido encomendada para “abrir os caminhos” da prosperidade e da vitória política a partir de um “ritual” da umbanda.
Mizanzuk, recifense de berço radicado em Curitiba, resolveu rebatizar o caso a partir do nome da vítima como “O Caso Evandro”, recentralizando o interesse de contar a história no fato obviamente mais importante, mas muitas vezes eclipsado: o fato de que uma criança foi assassinada.
Explorando as incongruências das investigações policiais, os processos criminais enfrentados pelos sete acusados, comparando depoimentos, versões e relatos de pessoas envolvidas e estudando exaustivamente as provas produzidas ao longo do caso, Ivan ergue um monumento de crítica ao sistema de justiça criminal e de desvelamento do racismo religioso que perpassa toda a narrativa do caso.
Mais importante – e esse é um spoiler necessário – consegue comprovar que as fitas e os vídeos de confissão extraídas dos sete acusados foram obtidas sob tortura, ações essas sempre relatadas pelos suspeitos e sempre desmentidas pela polícia e pelo Ministério Público.
Série escancara complexidade do caso
A história, que se tornou a 4ª temporada do podcast Projeto Humanos, de Mizanzuk, e o maior sucesso da sua carreira, foi adaptada também para uma série homônima na Globoplay e em livro para a editora Harper Collins, e é de uma complexidade que apenas 53 horas de narrativa, 8 episódios de uma série e 445 páginas podem juntos expressar.
O tempo levado por Ivan para reorganizar a história que desarranjou as vidas de Beatriz e Celina Abagge, Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares, Vicente de Paula Ferreira, Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli está contido nas imagens do promotor de justiça Paulo Sérgio Markowicz de Lima, ouvindo desconcertado o áudio das fitas que demonstra as torturas cometidas por policiais militares contra os acusados.
Visivelmente desconfortável, o membro do Ministério Público limita-se a dizer que “parece que a coisa não andou como deveria”, constatação que não foi suficiente para que o órgão buscasse mais informações sobre as denúncias de tortura.
A inabilidade do sistema criminal de prover justiça aos casos individuais, combinada com a utilização de torturas e a reiteração de erros judiciários, tornam o trabalho realizado pelo jornalista ainda mais importante para evidenciar que punição e justiça traçam caminhos muito diferentes.
Servem também para apontar a importância de jornalismo investigativo sério e comprometido com o respeito às pessoas que tiveram suas vidas afetadas por cada caso de violência.
Os males das posturas precipitadas
Se o tempo suportado enquanto preso injustamente é ainda mais doloroso e parece não passar, o tempo também parou para a família de Evandro Ramos Caetano e de outras crianças desaparecidas na mesma época, como Leandro Bosi, que desapareceu apenas dois meses antes de Evandro e que nunca foi encontrado. A família de Evandro não concede mais entrevistas para a imprensa e João Bosi, pai do menino Leandro, morreu em abril deste ano, após 29 anos de busca por seu filho.
Não faltam casos posteriores à morte de Evandro que evidenciam posturas precipitadas e errôneas de autoridades públicas e responsáveis pela cobertura midiática de crimes de grande repercussão.
Na semana em que assistimos à “caçada” a um suposto serial killer como se fosse um reality show, com direito a manchetes diárias em todos os jornais e autopromoção de agentes da polícia envolvidos na operação em redes sociais, cresce a percepção de que, mais do que se informar sobre a criminalidade, as práticas delitivas se consolidaram como fonte de distração e entretenimento.
No entanto, é necessário questionar: qual é a responsabilidade de agentes públicos e órgãos da imprensa no tratamento de casos de grande repercussão? Como as políticas de segurança pública e persecução criminal são transformadas quando passamos a tratar o crime como entretenimento?