Narrativa de um tempo
O resgate afetivo da herança de Benedito Nunes, dez anos após sua morte
Ricardo Evandro Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
Diferente do resto do país, os fevereiros em Belém não são de verão. O céu é cinza, pesado e baixo. Quase dá pra bater com a cabeça no teto de água. Há 10 anos, em um desses dias de não-verão, soube da notícia da morte do professor Benedito Nunes. Fui ao seu velório na Igreja de Santo Alexandre com os amigos que faziam parte do meu grupo de estudo. No passado, a igreja foi um seminário jesuíta no centro histórico de Belém.
Ernesto foi quem me falou pela primeira vez de Benedito. No ano anterior, cheguei a assisti-lo no ciclo de palestras sobre niilismo e Dostoievsky, no Seminário Pio X. Benedito estava muto velhinho, com a voz enfraquecida. Lia um texto sobre um tema o qual já havia escrito e publicado, chamado No tempo do niilismo (1993). Assisti àquela aula com uma certa melancolia – um sentimento pequeno-burguês comum na fantasmagórica cidade de Belém. Eu não era seu amigo, nem conhecido. Nunca tinha sido seu aluno. Mesmo assim, sentia que tinha alguma intimidade. Talvez porque tantas vezes seu pensamento foi o meu enquanto eu o lia.
Com o “Bené”, como era carinhosamente chamado, e com sua Passagem para o poético (1986) e No tempo na narrativa (1988), foi que consegui entender um pouco melhor a fenomenologia e a relação misteriosa entre ser e ente. Finalmente tinha começado a ficar um pouco menos difícil a relação presente nas Categorias de Aristóteles entre lógica, gramática e o ser que teria sido substancializado, destemporalizado pela tradição metafísica. Lá, no velório de Bené, sentia que havia perdido um tempo. Não havia mais tempo, não ao menos o tempo de estar-com. Uma temporalidade, mesmo que do futuro do pretérito, havia terminado ali, “(…) o existente humano não está no tempo: ele se temporaliza”.
A orientação que pude ter foi dada, até então, em conjunto, sendo aluno junto com outros alunos, com Ernesto, Felipe, Gilberto, Diego e Pedro, lendo, entre bolachas e água, os livros da coleção Os Pensadores, e a poesia de Max Martins – apresentada a mim pelo Ernesto –, tudo isso sendo feito nos apartamentos das nossas famílias. Passávamos horas lendo, conversando, contando piadas. Não estávamos mais no Colégio Marista, e nem lá poderíamos ter tido amizade devido às diferentes idades entre nós. Sim, éramos meninos velhos, privilegiados, da colono-classe média de Belém, tentando, sem saber ao certo, seguir passos de uma autoformação, ora orgulhosos do nosso autodidatismo, ora por muitas vezes frustrados pela desorientação metódica sobre o quê ler, estudar, escrever.
Uma vez apenas eu consegui conversar com Benedito Nunes. Tinha ido ao lançamento de A clave do poético (2009) na galeria de arte do CCBEU. O livro é um conjunto de ensaios organizados por Victor Pinheiro. Eu estava ansioso e entrei na fila dos autógrafos. Havia comprado dois exemplares. Pedi ao professor que autografasse o primeiro. “É para o meu amigo Ernesto… Ele vai ficar muito feliz com a sua assinatura”. Benedito me sorriu e pediu para que eu desse o outro livro. “Para quem é esse?”, ele me perguntou. “Esse é pra mim mesmo, professor. Me chamo Ricardo. Sou seu leitor. E ultimamente tenho lido sobre filosofia oriental”, confessei nem sei bem o porquê. “Ah é? Que você está lendo?”. “Tô lendo o Tao te ching”. “Sim, sim, de Lao-Tsé… Eu o acho muito interessante. Li há muito tempo. Há uma riqueza própria na filosofia oriental”. Bené assinou meu livro, pude me despedir de Adalberto e de outros amigos e amigas, e fui para casa. E só lá que pude ver o que Bené havia me escrito.
“Para Ricardo,
unindo Oriente e Ocidente, c/ um abraço do Benedito Nunes”
Belém, 18-11-2009”
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da UFPA. Está no Instagram.