Qualquer maneira de cuscuz vale a pena
Guerreiros do Twitter fizeram do cuscuz paulista uma espécie de boneco vodu da máquina opressora
Marcos Nogueira
contato@cozinhabruta.com.br
Jogue “cuscuz paulista” na busca do Twitter, mas vá usando colete à prova de balas: é só tiro, pipoco, chumbo grosso contra o indefeso prato de comida.
“Se for obrigado a comer cuscuz paulista para tomar a Butanvac, prefiro morrer”, dispara um indivíduo do Rio de Janeiro, RJ.
“A palhaçada que vocês fizeram com o cuscuz é quase um crime universal”, açoita um ser humano do Distrito Federal.
“Deveria ser crime”, denuncia uma jovem gaúcha muito revoltada.
“Aquele negócio é uma atrocidade”, vocifera alguém que exibe, na foto de perfil, um cangaceiro. Acho que é Lampião.
“Que parada nojenta, mano”, reclama um tuiteiro nascido no longínquo ano 2000, sem precisar onde. Pela linguagem que usa, presumo ser conterrâneo meu.
Na condição de… bem… paulista, eu ergo a bandeira branca e peço: menos, por favor.
O comportamento de manada popularizou os ataques ao cuscuz paulista entre uma certa juventude arejada, que pende à esquerda, no Twitter. Será que eles algum dia provaram o tal do cuscuz? Será que realmente sentem tanto nojo? Ou é apenas a endorfina dos likes?
Até o influencer comunista Jones Manoel, pernambucano, detonou seus petardos na guerra do cuscuz. Postou uma foto do ex-governador paulista Márcio França com a massacrada comida e o seguinte texto:
“Que negócio feio da desgraça. E não, não tô falando do Márcio França. Os paulistas que me desculpem, mas isso é cuscuz não.”
Preciso concordar com a avaliação estética do Jones; por mais feio que seja o cuscuz do França, contudo, ele ainda é um cuscuz.
Mas aí um baiacu gaiato mordeu a isca e acusou o historiador de paulistofobia. Recebeu de volta:
“Tirei uma onda com a foto do cuscuz paulista, apareceu o Câmara Cascudo Bandeirante 2.0 dizendo que por causa da onda, eu estava oprimindo São Paulo sendo xenofóbico e bairrista (além de esquerdomacho!???!). Xenofobia contra SP = racismo reverso.”
Como diria o sujeito que cochilou no ônibus, a que ponto chegamos?
Fazer do cuscuz de São Paulo um boneco vodu da máquina opressora ultrapassa os limites do surreal.
Estamos falando de farinha de milho hidratada com palmito, tomate, ervilha, ovos e, ocasionalmente, algum tipo de carne: no interior, galinha; no litoral, sardinha ou, em dia de festa, camarão. O que há de nojento nisso? Por que não seria cuscuz?
Se apelarmos para o purismo raiz, o cuscuz nordestino tampouco mereceria tal nome. O original, o autêntico, o genuíno é apenas o couscous de semolina do Magrebe.
Os portugueses, meio amourados, trouxeram para o Brasil a macia farofa norte-africana. Aqui, o cuscuz evoluiu fora de controle e se tornou coisas distintas em cada região. Todo cuscuz tem valor.
A quem insiste em fazer feia figura do cuscuz paulista sem sequer tê-lo provado, proponho uma visita à cidade costeira de Ubatuba, quase na divisa do Rio de Janeiro. Junto ao mercado de peixe, à margem do rio em que garças e urubus se fartam com o descarte fedorento, fica o bar Patto Loko.
Releve o nome ridículo do lugar e conheça o melhor cuscuz. Com camarão, como nos dias de festa.
Marcos Nogueira é jornalista especializado em gastronomia. Pode ser encontrado no Cozinha Bruta, no Twitter e no Instagram.