A ministra que poderia ter sido
Sem Ludhmila Hajjar, o Brasil perde a oportunidade de ter uma Ministra da Saúde capaz de conduzir a crise com inteligência e rigor
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
Nas entrevistas que concedeu após a confirmação pela imprensa de que não seria a próxima Ministra da Saúde, Ludhmila Hajjar demonstrou que tem as qualidades para ocupar o cargo. A médica falou com serenidade, segurança, autoridade e independência, sem fugir à coragem da crítica franca. É preciso respeitá-la. Mais do que habilidade e disposição de trabalho, Hajjar carrega uma trajetória de enfrentamento direto à doença no lugar que mais importa: os hospitais.
As entrevistas foram, sob todos os aspectos, desesperadoras: imaginar que poderíamos ser conduzidos por uma mulher como Ludhmila pareceu uma miragem que nos consolou durante algumas horas, mas que nos foi covardemente tirada. Estamos mesmo num poço sem fundo.
A médica não poupou revelações. De uma forma elegante, deixou evidenciada sua decepção, ao reconhecer que talvez tenha sido ingênua: “acreditei na mudança de paradigma”. Ela, afinal, é uma figura pública, com uma opinião conhecida sobre as melhores estratégias para combater a pandemia. Detalhou quais sejam: isolamento quando os números estiverem nas alturas, organização de protocolos médicos que possam ser uniformizados na linha de frente, ajuste das negociações internacionais para aquisição de vacinas, implantação de um gabinete de crise com funcionamento ininterrupto para atender às necessidades de estados e municípios.
Visivelmente frustrada, Ludhmila Hajjar declarou que, por um breve momento, viveu o sonho de ver no país a condução inteligente da crise de saúde pública. Chamou atenção para a falta de preparo de muitos médicos para as manobras de intubação, enfatizou a necessidade de compartilhar com a comunidade médica informação sobre administração de medicamentos. Ao criticar a falta de tato para as relações internacionais com a OMS, a médica disse, sem meias palavras: cloroquina e cia são delírios do passado, é uma insanidade insistir neles.
A não indicação de um nome tão qualificado para substituir o inepto ministro Eduardo Pazuello é mais um capítulo macabro da história brasileira no enfrentamento da pandemia. Revela a incapacidade da sociedade e do parlamento para domesticar um governo dedicado a errar e, errando, pronto a matar mais brasileiros. Tão grave quanto a sabotagem do presidente, são os detalhes sórdidos: Ludhmila Hajjar foi hostilizada, ameaçada, alvo de fake news e tentativas de agressão no hotel em que permaneceu em Brasília. O que impediu sua permanência não foi apenas a “falta de convergência técnica”, como declarou a médica.
Trata-se de uma divergência ética fundamental, de humanidade.
O presidente e sua claque, contudo, podem agir assim porque não estão sozinhos: no dia em que percebemos, com tristeza, que não teremos uma boa ministra, é difundida pelo whatsapp uma lista de médicos cearenses manifestando apoio às temeridades absurdas que agravam a crise.
No manifesto, os mais de duzentos médicos declaram que elegeram Bolsonaro, “até agora – em nossa concepção –, o único Presidente da República que, literalmente, derramou o próprio sangue pelo Brasil”. Para os tresloucados doutores, Bolsonaro “demonstra a todos que a resiliência é, antes de tudo, uma virtude dos guerreiros e dos patriotas”. Pedem que deixem o presidente trabalhar em paz. A peça ficará na história como um documento comprobatório de algo importante: nenhum atentado da magnitude daquele praticado pelo governo acontece sem uma boa dose de apoio popular. Infelizmente, por uma nota de tragicidade, o apoio mais perigoso vem daqueles que deveriam, por dever de ofício, nos salvar do caos.
Hajjar, assim como outras médicas e médicos dignos da profissão, terminou a entrevista com uma declaração infeliz, mas precisa: o cenário é sombrio e ainda vagaremos por muito tempo sem condução ou futuro.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.