Bemdito

“A que horas as luzes se apagam aqui?”

O controle social, a luta contra os manicômios e o futuro das mulheres do Crato
POR Geórgia Oliveira
Fonte: Arquivo Pessoal

Quando entro em sala de aula para falar sobre controle social, costumo falar principalmente sobre o encarceramento criminal – aquele que deriva do nosso nada brando Direito Penal e nos elevou à terceira nação mais encarceradora do mundo.

No entanto, o estabelecimento de um sistema de controle que segrega e encarcera vai além do complexo criminal representado pelas prisões: é complementado por outras instituições encarceradoras, apresentando-se em diversas formas de tutela. Em muitos casos, constitui um contínuo de sujeição destinado ao controle e mascarado sob a forma de “cuidado”. O tratamento manicomial é uma delas.

Nessa última semana, 33 mulheres com idades entre 30 e 90 anos foram encontradas em cárcere privado em uma clínica de repouso na cidade do Crato. A clínica mantinha idosas e pacientes psiquiátricas em condições desumanas: encarceradas em cubículos transformados em celas com grades, sem condições de higiene, sob suspeita de receberem medicação sem atendimento médico e ainda com seus benefícios previdenciários sendo indevidamente apropriados. O diretor da clínica, identificado como Fábio Luna dos Santos, além de ser o responsável pela situação alarmante a que as mulheres eram submetidas, é ainda suspeito de abuso sexual contra duas pacientes.

Uma das vítimas de violência sexual foi a responsável por denunciar a situação a um familiar, que levou o bilhete escrito à mão até a Delegacia de Defesa da Mulher da cidade. Na escrita de quem pedia “vem logo, por favor” e narrava brevemente os abusos, é possível vislumbrar o controle que é exercido continuamente sobre a vida e os corpos das mulheres.

Nesse caso, elas enfrentam também a falta de assistência após o envelhecimento ou ainda a segregação, fruto do tratamento reservado àquelas e àqueles com condições psiquiátricas diversas. Em depoimento à delegada responsável, o suspeito afirmou que “o local era apropriado para elas porque elas tinham problemas psicológicos e tinham que ficar presas”.

Se a mentalidade manicomial no tratamento dos indivíduos está muito além da estrutura física de um asilo ou manicômio, nessa fala ela se manifesta de forma assustadoramente ordinária, esperada, natural. Qual a outra opção que não a segregação de trinta e três mulheres em espaços deploráveis, à revelia até da finalidade declarada de “tratamento médico”? Manifesta-se ainda na continuidade do controle: não basta aprisionar, medicar e cercear a liberdade mínima, há ainda a violação sexual, aumentando o desamparo de quem já se encontra privada do convívio e da assistência social. Não é à toa que todas as pessoas encontradas eram mulheres: a tutela, a medicalização e o abuso dos nossos corpos fazem parte de uma política de longa data dos sistemas de controle.

Embora tenha sido o abuso sexual o gatilho para a ação que expôs a situação das mulheres, a própria situação de tratamento em que elas se encontravam – que cumpre mais requisitos de tortura, e não de tratamento ou cuidado da saúde física e mental – já seria justificativa para uma intervenção na “clínica”. Apesar dos avanços da luta antimanicomial no Brasil, espaços como esse continuam existindo e são fortalecidos por retrocessos na política de saúde mental no Brasil. Sob a alcunha de uma “nova” abordagem, desde 2015 essas propostas reanimam políticas segregacionistas, com foco na medicalização, na adequação dos indivíduos a um ideal de “normalidade” e com as “comunidades terapêuticas” e os manicômios psiquiátricos tradicionais como espaços de manutenção do controle sobre quem apresenta “transtornos”.

Liberadas das celas, as 33 mulheres do Crato estão em abrigamento provisório e serão retornadas às suas famílias, muitas ainda não encontradas. Ainda não sabemos quem são elas, suas histórias, quanto tempo de internação elas passaram e quais outras experiências de tutela passaram ao longo de suas vidas. Também não sabemos sob quais condições elas voltarão a viver daqui pra frente. Impossível não lembrar do livro da autora Daniela Arbex sobre o genocídio ocorrido no Hospital Colônia de Barbacena e de uma de suas passagens mais marcantes. Um dos ex-internos, quando abrigado em uma ONG após deixar a instituição, questiona na sua primeira noite fora do hospital:

— A que horas as luzes se apagam aqui?

Que essas mulheres possam acender as luzes quando quiserem.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.