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A virada democrática nos EUA tem nome de mulher

O que as campanhas eleitorais de 2020 e o protagonismo das mulheres, sobretudo na Geórgia, têm a ensinar para as próximas eleições - até lá, grave este nome: Stacey Abrams
POR Eduarda Talicy
Foto: Callie Giovanna/TED

O que as campanhas eleitorais de 2020 e o protagonismo das mulheres, sobretudo na Geórgia, têm a ensinar para as próximas eleições – até lá, grave este nome: Stacey Abrams

Eduarda Talicy
eduardatalicy@gmail.com

A tarde do último dia 20 de novembro segue recente na memória de Renata Temps. Psicóloga brasileira residindo na Geórgia desde 2016, ela foi uma das centenas de pessoas a trabalharem com afinco para a conscientização do voto e a virada democrática no estado que é considerado um dos mais conservadores dos Estados Unidos. Em um contexto pandêmico e uma avançada conservadora mundial, a Geórgia elegeu novamente um democrata após mais de 30 anos e foi decisiva para a vitória presidencial. Com mais de quatro milhões de votos registrados, o estado quebrou os recordes de todos os tempos de participação nas urnas.

“Lembro de quando fiquei sabendo da vitória de Biden. Fui dar aula e estava de carro na I-75, que é uma rota estadual super movimentada daqui, e vi uma caminhonete com a bandeira dos Estados Confederados (grupo conservador que lutou na guerra civil pela independência para impedir a abolição da escravatura); então vi que tinha um carro do lado direito e outro carro atrás buzinando, comemorando o resultado de Biden. Eu peguei a esquerda, fechamos a caminhonete dele e buzinamos ao lado, gritando juntos a vitória. A lágrima chegava a escorrer. Eu gritava, xingava em português, só de pensar no alívio de não mais ver mais essa bandeira por todos os lugares”, rememora. “Foi uma alegria como há muito tempo eu não sentia, uma sensação de dever cumprido”, respira.

Renata Temps é uma das centenas de pessoas que aderiram com afinco a um movimento popular pela conscientização do voto em diversos estados do país norte-americano. Especialmente na Geórgia, este é um processo iniciado há algumas décadas por Stacey Abrams. A advogada negra lidera há anos o movimento para levar minorias do Estado americano às urnas. Ela é a primeira mulher negra encarregada de responder ao discurso do Estado da União, um evento que ocorre anualmente, no qual o presidente em exercício fala ao Congresso sobre a situação do país e, tradicionalmente, o partido de oposição escolhe um nome para responder ao governante. Stacey também foi a primeira mulher negra a ser eleita candidata ao cargo de governadora.

Por não ser obrigatório, o exercício do voto nos Estados Unidos passa por uma série de desafios, que vão desde a desmobilização da população, até um processo denominado supressão de votos, que são regras legais que dificultam a chegada de negros, pobres e latinos às urnas.

Em 2013, a ativista criou o The New Geórgia Project, onde passou a trabalhar com maior afinco ainda no registro de eleitores negros, na orientação e na conscientização da importância do voto de negros e latinos no estado que é considerado o reduto republicano.

A advogada, que chegou a se candidatar em 2018 ao governo da Geórgia, perdeu para o republicano, Brian Kemp, após um processo tumultuado de contagem de votos e uma série de denúncia de fechamento de colégios eleitorais e medidas que anularam o voto de centenas de eleitores. A maioria, negros.

E para explicar como Renata Temps, a brasileira citada no começo deste texto, percorre esta história teremos de voltar alguns passos. Renata e Stacey não se conhecem. “Ainda”, ela reforça. Morando nos Estados Unidos desde julho de 2015, Renata acompanhou a inesperada vitória de Donald Trump para a presidência e o anúncio explícito do início de um movimento conservador de extrema direita que já ganhava muita força no Brasil.

A psicóloga conta do clima de hostilidade no bairro. “Certa vez, no estacionamento do supermercado, um senhor que devia ter quase 80 anos deu a ré do carro dele. Eu o vi e ele não me viu. Eu buzinei para alertar, fiquei nervosa e desci para pedir desculpas. Quando eu abrir a minha boca para falar ele olhou para a esposa e falou: ‘Tá vendo, tinha que ser, eu voltei no Trump para ele colocar pessoas lixo como você é fora do meu País’”. Apesar de ter a pele branca, ela conta que ainda assim sofre ofensas, “É que meu tom de pele é diferente do deles”, diz.

Foi durante as aulas de inglês, após a escrita de uma redação sobre o contexto político estadunidense, que ela recebeu o convite da professora Helen Robson, 46. “Ela percebeu como eu me interessava pelo tema e me convidou para conhecer o movimento”. De acordo com Renata, a adesão à campanha foi imediata. Durante meses, ela e outros ativistas se organizaram e foram de porta em porta em campanha pela eleição democrata no Estado.

Há muitas complexidades para convencer um eleitor a ir votar nos Estados Unidos. “Chegou o momento em que fomos visitar de porta em porta, e as pessoas contavam para gente que não iam votar porque ninguém as representava, reclamavam da retirada dos colégios eleitorais, há a dificuldade do transporte público ou andam muitos quilômetros, as pessoas passam horas nas filas. A pessoa perde um dia de trabalho e deixa de receber aquele dinheiro no dia do voto”.

Além de Biden, dois senadores democratas também se elegeram no Estado. Raphael Warnock e Jon Ossoff venceram os republicanos Kelly Loeffler David Perdue no 2º turno.

“Foi um trabalho árduo, porque além de toda campanha que fizemos no primeiro turno, tivemos de repetir tudo no segundo turno, explicar para as pessoas que elas precisavam se cadastrar novamente e toda a burocracia que elas já tinham feito no primeiro turno”, explica.

Para a psicóloga, no entanto, foi principalmente o movimento desencadeado após a morte de George Floyd, aliado à omissão de Trump durante a pandemia, que levou milhares de eleitores às urnas em busca da mudança presidencial.

Norte-americana residindo no subúrbio de Atlanta, Geórgia, no condado de Cobb, Helen Robson é professora de inglês acadêmico para estudantes internacionais e imigrantes na Kennesaw State University. Ela é uma das mobilizadoras da candidatura de Stacey. A vitória de Trump e, principalmente, a derrota de Stacey em 2018 – quando presenciou o impacto da supressão de votos nos resultados eleitorais – foram os principais fatores que estimularam Robson a se engajar ainda mais nas campanhas em 2020.

“Para o ciclo eleitoral de 2020, estive envolvida em muitas disputas diferentes, desde o nível municipal até a legislatura estadual e até as disputas federais para Senado e Presidente. As lições aprendidas com as eleições de 2018 realmente influenciaram o foco das organizações”, explica.

Ao longo da campanha, Helen participou de atividades de várias organizações de base – não partidárias, lideradas por democratas, algumas para candidatos específicos, outras lideradas por mulheres e organizações para negros.

De acordo com ela, as frentes criaram diversas formas de participação, que também tinham desafios por causa da pandemia: envio de mensagens de texto aos eleitores, ligações, cartões-postais para eleitores com baixa propensão sobre como verificar seu status de registro, entrega de literatura sobre como se registrar para votar na porta das pessoas, além de informativos com horários e dias de votação.

“Fiquei muito orgulhosa dos resultados porque o estado conservador em que cresci fez tanta diferença na eleição. E também me senti (e ainda sinto) muito grata às muitas organizações lideradas por negros (aquelas que existiam muito antes da ascensão de Stacy Abrams), que têm trabalhado por anos e anos para lutar contra a supressão do eleitor na Geórgia e registrar e retirar o voto negro. Fiquei incrivelmente aliviado com o fato de a Geórgia ter ajudado nossa nação a evitar uma queda no autoritarismo. Como um progressista, acho Biden um tanto neoliberal demais para mim, mas ele não é Trump”, relata.

Apesar de ser considerada uma expoente progressista e um símbolo de renovação do partido democrata, a candidatura de Stacey ao governo da Geórgia tende a enfrentar diversos desafios. No último dia 25 de março, a Geórgia aprovou um amplo projeto de lei que amplia exigências para votos por correio.

Com a mudança, eleitores que decidirem votar pelos correios devem anexar uma identidade com foto na cédula; além disso, o prazo para o envio do voto antecipado será encurtado e haverá menos locais para depósito das cédulas. A lei também interfere na votação presencial, já que fica proibida a distribuição de água e comida para quem estiver nas filas.

O projeto é considerado pelos democratas como limitante de votos. No ano passado, mais de 1,3 milhão de pessoas votaram pelos correios na Geórgia. Republicanos, no entanto, argumentam que a aprovação traz mais segurança para o pleito. Em entrevista coletiva, Joe Biden criticou a lei e afirmou que iria pensar numa forma de reverter a aprovação no Congresso.

Contrários à lei, grupos de direitos civis pediram que empresas multinacionais se manifestassem e se unissem à luta contra as restrições de voto da Geórgia. Empresas como Coca-Cola, BlackRock e Microsoft vieram a público condenar a nova lei por ir contra princípios da democracia.

“Este é o principal desafio para o direito de voto e uma eventual vitória de Stacey Abrams em 2022 (se ela decidir concorrer)”, acredita Helen. “Nossa esperança é que, no nível federal, a Câmara e o Senado dos EUA tenham uma nova lei que restauraria as proteções eleitorais. Se essa legislação federal for aprovada, a Geórgia e muitos outros estados controlados pelos republicanos não seriam capazes de decretar as restrições eleitorais que propuseram”, pontua.

Eduarda Talicy é jornalista. Está no Instagram.

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