Bemdito

Cabul um mês depois

Uma análise sobre o panorama de tensões globais um mês após a reconquista de Cabul pelo talibã
POR Wanderley Neves
Criança entra em avião militar em Cabul (Foto: Brandon Cribelar/Força Aérea EUA)

Completou um mês na semana passada a espetaculosa reconquista da capital do Afeganistão, Cabul, pelos insurgentes talibãs em 15 de agosto. Apenas 4 dias antes, os atentados terroristas do 11 de setembro de 2001 completaram 20 anos, o primeiro aniversário sem tropas dos Estados Unidos presentes no país onde o grupo Al Qaeda teria planejado a operação — como prometera o presidente Joe Biden quando ainda candidato.

Mas no mesmo 11 de setembro também provocativamente assumia em Cabul o novo governo interino do restaurado Emirado Islâmico do Afeganistão, a teocracia islamista que os Estados Unidos e seus aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) passaram os últimos 20 anos matando e morrendo (supostamente) para que ficasse confinada aos livros de História. 

Apesar do vergonhoso cinismo das declarações dadas por Biden sobre o tema nas últimas semanas, os eleitores norte-americanos lembram-se muito bem de que um dos objetivos propagandeados da invasão ao Afeganistão era sim construir instituições que impedissem o Talibã (e sua aliança com o grupo Al Qaeda) de voltar ao poder.

A aprovação do trabalho do presidente já vinha apontando para baixo desde julho com o rebote da Covid-19 em pleno verão, mas a partir da queda de Cabul a reprovação disparou, ultrapassando a avaliação positiva em 30 de agosto (dia 227 da gestão) na média das pesquisas compiladas pelo site FiveThirtyEight.

Ontem a página registrava que Biden tinha 46% de aprovação contra 49% de desaprovação, um resultado líquido negativo em 3 pontos percentuais. Já foi até pior, mas comparando com o pico de 19,7 pontos positivos no fim de janeiro, é ainda um tombo de 22 pontos. Dos 13 presidentes anteriores, apenas outros três entraram no negativo tão cedo: Donald Trump (2017–21, 14 dias), Gerald Ford (1974–77, 123 dias) e Bill Clinton (1993–2001, 128 dias). E dois deles não conseguiram se reeleger.

O efeito eleitoral pode chegar já no ano que vem, quando a tríplice coroa democrata conquistada em 2020 será posta à prova pelas eleições de meio de mandato, que naturalmente favorecem a oposição e, pelos dados de hoje, devem fazer virar o Congresso contra Biden. Também segundo o FiveThirtyEight, a vantagem dos democratas na intenção de voto genérica para 2022 está apertando.

Como ficará a relação com os militares é também outro nó com ramificações eleitorais. Leve em conta que os Estados Unidos têm o triplo de militares na ativa por habitante do que o Brasil e gastaram ano passado quase 40 vezes o orçamento do nosso Ministério da Defesa. No Pentágono, há a insatisfação por Biden ter descartado a primeira opção dos generais, que queriam manter alguma presença no Afeganistão, ao que creditam também o dano de reputação causado pelas imagens da retirada desesperada de Cabul, que ainda custou a vida de 13 militares norte-americanos.

Entre os veteranos (e seus familiares, amigos) da mais longa guerra empreendida pelos Estados Unidos, a pergunta: “eu arrisquei minha vida, vi amigos morrerem, serem mutilados, para no fim acontecer isso?”. Os membros das Forças Armadas dos Estados Unidos podem ser mais disciplinados do que os brasileiros, mas também votam. 

A última crise de Merkel
Essa volta do “cemitério dos impérios” ao topo do noticiário depois de tanto tempo fez outros países lembrarem que estão também há quase 20 anos enredados com o destino do Afeganistão. Abençoados por uma controversa resolução do Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos evocaram após o 11/9 pela primeira e única vez na História a cláusula de proteção mútua da Otan, convocando os demais países da aliança transatlântica para a “guerra contra o terror” em solo afegão.

Embora quase a totalidade dos aliados tenham retirado suas tropas do país até o início de julho, restaram em solo os civis do corpo diplomático e do setor privado. Desde então, ao menos 39 países realizaram operações de evacuação para retirar seus nacionais e afegãos vulneráveis a retaliações por terem colaborado com os invasores. No total, mais de 124 mil pessoas foram evacuadas do aeroporto Hamid Karzai. E, bem, essas pessoas têm de ir para algum lugar.

Na Alemanha, a nova onda de refugiados chega em plena campanha para eleger quem vai suceder Angela Merkel na Chancelaria Federal, que ocorre no próximo dia 26. Além dos milhares que estão apenas de passagem na base norte-americana de Ramsteino governo alemão evacuou 3.600 afegãos, podendo o número aumentar com aqueles que tenham direito a buscar familiares que ficaram para trás. Nada perto dos 800 mil sírios que chegaram durante a crise de 2015, mas suficiente para ser explorado politicamente.

Outros países europeus que viram nos últimos anos crescer fortemente o sentimento anti-imigração também abrigaram grandes quantidades de afegãos: 8 mil no Reino Unido4.890 na Itália2.600 na França. É claro que a situação aqui é diferente: enquanto os sírios fugiam de uma guerra completamente alheia, esses afegãos chegaram por obra dos próprios governos e por correrem risco de vida após terem sido intérpretes, guardas, motoristas, desses países. É fácil argumentar que era obrigação garantir a segurança dessas pessoas e suas famílias, mas segue um temor difuso acerca do que poderá acontecer quando os talibãs reabrirem as fronteiras.

Como evitar que deixem o país quando, segundo a ONU, uma brutal escassez de dinheiro e alimentos faz com que mais de 90% das famílias tenham dificuldade para se alimentar satisfatoriamente? Entra o dilema de que para que o país agora tenha um mínimo de estabilidade, o governo do talibã tem que conseguir ao menos ficar em pé e reorganizar a economia. Mas não ajuda o fato de que já há brigas dentro do palácio presidencial entre militares e políticos.
 
Terceiras vias
Se os países que passaram duas décadas lutando contra o talibã agora não podem simplesmente colocá-los debaixo da asa para evitar que a crise caia no próprio colo, entram outros atores. Dos fronteiriços, o Paquistão é o que tradicionalmente mais tem influência militar e ideológica sobre o grupo, mas a China fincou os pés no país, que dever entrar na sua carteira mundial de investimentos; ainda a saber o que o Talibã pensa do genocídio dos uigures, comunidade de maioria muçulmana dividida pela fronteira dos dois países. A Turquia de Erdoğan já se ofereceu para operar o aeroporto de Cabul. Mas nenhum deles chegou a reconhecer oficialmente o novo emirado.

Interessante é a posição de outro emirado: o Catar, minúscula península que abriga ao mesmo tempo os líderes políticos do Talibã, com direito a abertura em 2013 de um escritório oficial, e a principal base aérea norte-americana na região. Em 2017 o emirado foi isolado pelos seus vizinhos de Península Arábica com um bloqueio comercial e diplomático por não se alinhar com a Arábia Saudita contra a influência iraniana. Habilidosamente viram no Afeganistão uma oportunidade para elevar sua relação estratégica com os Estados Unidos.

Foi na capital Doha que em fevereiro de 2020 foi assinado o acordo de paz entre o Talibã e os Estados Unidos, estabelecendo um prazo para a retirada das tropas da Otan e o fim da guerra. Em janeiro de 2021, acabou o bloqueio liderado pelos sauditas contra o Catar, acordo mediado por Estados Unidos e do Kuwait. Nesta sexta foi divulgada uma foto do emir do Catar, xeique Tamim Bin Hamad Al Thani com o rei de facto da Arábia Saudita, príncipe Muhamad Bin Salman, sorridentes em bermuda e camisa de férias no Mar Vermelho. 

Após a queda de Cabul, cerca de metade das mais de 124 mil pessoas evacuadas do aeroporto passaram pelo Catar. É lá onde funcionam hoje as embaixadas dos Estados Unidos e outros países aliados deslocadas do Afeganistão. É também lá onde estão acontecendo conversas sobre como será a relação do mundo com o novo governo talibã, tendo o ministro catari de Relações Exteriores já recebido a visita de seus homólogos norte-americano, britânico, alemão, francês, italiano e holandês. Se o Catar está disposto a carregar o fardo de ser fiador do que o Talibã fizer daqui pra frente, ainda não é possível saber, mas, por enquanto, a aposta deu muito certo.