Afinal, para que servem os heróis?
Como as disputas de poder e arbitrariedades determinam quem merece a qualidade heroica
Desirée Cavalcante
desireecavalcantef@gmail.com
No dia em que se relembra a morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ao lado das tradicionais homenagens oficiais, ecoam discussões sobre a autenticidade dessa figura heroica. Desde a forma como é retratada a sua imagem – à semelhança de Jesus Cristo -, até a reconstrução dos fatos da sua vida e, especialmente, a criação da sua representação como um mártir, tudo é posto sob discussão.
Independente do aprofundamento desse debate, ele remonta à questão do papel que a exaltação de indivíduos e de seus feitos exerce sobre o imaginário coletivo. De um lado, os mitos e os heróis nacionais seriam a representação dos valores mais caros a uma sociedade, uma espécie de modelo ideal de cidadão. Por outro lado, não seriam retratados com os traços de humanidade indissociáveis da sua existência e espelhariam a ideia da realização de algo que é impossível para o cidadão comum. A sociedade sofreria, nesse sentido, de uma espécie de dependência de figuras extraordinárias que surgissem, a cada período da história, para salvar-lhes dos problemas.
Diante de tantas controvérsias, não solucionadas nem mesmo pelo crivo do tempo histórico, poderíamos questionar para que serve a busca de heróis. A construção dessas figuras assume relevo específico quando se analisa fatos do presente. A título de alcançar um nobre objetivo coletivo, os personagens, autointitulados ou convenientemente articulados como salvadores, tendem a funcionar, como em filmes ou quadrinhos, segundo o seu próprio código de regras, acima da lei ou de qualquer instituição, utilizando as suas capacidades sobre-humanas para resolver os problemas. Aos indivíduos comuns, não sobraria nada além de esperar pela vitória ao fim do episódio.
A própria escolha de quais valores e indivíduos mereceriam a qualidade heroica, no entanto, não é distanciada de disputas de poder e arbitrariedades. Deslocar um indivíduo ou um grupo do corpo social não soluciona problema algum. O sentido dos símbolos de vitória ou de honra de uma nação só é realizado quando incorporado e concretizado em ação coletiva. Para isso, importam todos os indivíduos.
Os heróis nacionais não existem para tornar insignificantes os papéis dos cidadãos comuns. Ao contrário, a qualidade da vida em sociedade não é cristalizada pelos momentos extraordinários. As vitórias retumbantes e as ações legítimas de coragem, certamente, merecem ser conhecidas e festejadas. Sem diminuí-las, entretanto, também têm importância as aparentes insignificâncias, as pequenas vitórias, que jamais tornarão alguém detentor de reconhecimento histórico, mas que são, ao fim de tudo, aquilo que determina a dose da nossa frágil – e muitas vezes passageira – felicidade.
Desirée Cavalcante é advogada, professora e pesquisadora na área de Direito Constitucional. Está no Instagram.