Bemdito

“Às favas todos os escrúpulos de consciência”

Herança da ditadura militar, Lei de Segurança Nacional voltou a dar as caras em 2019 e é prova de que o AI-5 ainda está entre nós
POR Alex Mourão
Reprodução

Herança da ditadura militar, Lei de Segurança Nacional voltou a dar as caras em 2019 e é prova de que o AI-5 ainda está entre nós

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

Na noite de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, sob a voz do locutor Alberto Curi, acompanhado do ministro da Justiça Gama e Silva, foi lido para todo o Brasil o texto do ato institucional número 5. Sim, em letras minúsculas mesmo, pois é assim que esse ato deve ser lembrado.

Naquela noite, a ditadura entrava no seu período mais agudo. Em apenas poucos artigos, a norma ampliava os poderes do regime para cassar mandatos de opositores, suspender direitos políticos e fechar o Congresso Nacional. Ainda, suspendia o direito de habeas corpus. Na prática, naquele momento, todos os escrúpulos de consciência foram às favas, como na frase que é o título desse artigo e foi atribuída a Jarbas Passarinho que participou da reunião e no momento a teria dito.

Formalmente, o ato esteve em vigor até 31 de dezembro de 1978. Porém, deixou como herança efeitos que foram além e se fazem presentes até os dias atuais. Entre as heranças do período autoritário, está a Lei de Segurança Nacional (lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983), que define uma série de condutas ditas crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. A lei está em vigor até hoje e é um verdadeiro exemplo de um entulho da ditadura. Resultado de um país que não enfrentou seus fantasmas do passado, permanecendo nele preso.

Após a redemocratização e a Constituição Federal, a Lei de Segurança Nacional parecia ser aquele assunto escondido, jogado num canto de parede e sem muita serventia. Tanto que, até para os professores de Direito, ela andava meio esquecida. Quando lembrada, era mais como o que ela realmente é: um basculho.

Porém, como resultado do medo de enfrentar o passado, ela está ali, vigente e sempre à espreita, pronta a ser usada para calar as vozes contrárias, como pensada desde a sua edição.

O que antes estava esquecido desde 2019 tem dado as caras, aparecendo no noticiário e sendo manejada como forma de intimidar as vozes que discordam do governo. Segundo levantamento feito pelos advogados Lênio Streck e Pablo Frota[1], o número de inquéritos abertos na Polícia Federal para apurar condutas relativas à Lei de Segurança Nacional tem aumentado consideravelmente. Em 2016 foram sete. Em 2017, cinco. Em 2018, foram 19 e, entre 2019 e 2020, o número passou dos 75 inquéritos, mostrando a simpatia do atual governo com a norma. Mais do que isso: esse aumento do número de inquéritos mostra o uso institucional do Direito Penal como forma intimidatória, revelando a sua antipatia com a democracia.

Recentemente, dois casos ganharam maior repercussão por conta da fama de seus envolvidos.

No primeiro deles, o youtuber Felipe Neto foi intimado a prestar esclarecimentos em uma investigação iniciada com base na Lei de Segurança Nacional. No caso, pelo que foi noticiado, um dos filhos do presidente, um dos zeros alguma coisa, requisitou a investigação junto a um delgado de polícia civil. O motivo foi porque o influenciador havia chamado o presidente de genocida. Porém, já há entendimento no Poder Judiciário de que a crítica, mesmo se ela for mais incisiva ou contundente, está protegida pela Constituição. Além disso, a competência para a apuração é da Polícia Federal – conforme previsto no artigo 37, da Lei de Segurança Nacional -, e não da Polícia Civil, como se deu no caso.

Além de Felipe Neto, o líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) Guilherme Boulos também foi intimado pela polícia, agora, a Federal (pelo menos acertaram aqui) para prestar depoimento em inquérito no âmbito da mesma Lei. No caso, segundo noticiado, a Polícia Federal apura uma postagem de Boulos e o depoimento está marcado para esta quarta-feira, 28 de abril. Acompanhemos.

O uso de legislações penais como forma de intimidação não é necessariamente uma novidade. Também não foi inventado pelo atual governo. Mas chama a atenção saber que uma lei adormecida numa gaveta qualquer, anacrônica e sem fundamento constitucional, ainda possa ser usada no cenário político. E, que vem sendo usada com mais frequência desde 2019. Mais do que isso: chama a atenção a lei ainda existir.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.